A internet e as redes sociais são muito bacanas, muito úteis, criaram novos paradigmas de comunicação, e coisa e tal. Tudo verdade. Mas a vida digital criou e multiplicou um certo tipo que é difícil de engolir: o sommelier. Não o original, aquele cara bem-vestido que é conhecedor profissional de bebidas, que cuida da compra, armazenamento e elaboração de cartas de vinho de restaurantes. Esse está exercendo, de fato, um ofício.
O que a rede fez foi trazer ao mundo os sommeliers da vida alheia, expressão sabiamente cunhada por minha amiga Dida para classificar aquelas pessoas que estão certas de que são proprietárias únicas da verdade. Qualquer um que discorde de seus pontos de vista não passa de um completo ignorante perto de sua altíssima qualificação nessa arte nem sempre fina que é viver. E parte das atividades inclui querer, a todo custo, fazer com que a gente engula suas “refinadíssimas” preferências.
É aquela sua amiga que não pode ver uma foto de viagem que já vem socando dicas não-solicitadas: “Não deixe de fazer tal coisa…”, “Mas você ainda não visitou tal lugar?…”, “Ir para aí e não fazer o programa X é como não ir”… É o camarada que agora só toma cerveja artesanal e condena qualquer amigo adepto da boa e velha pilsen. É a parentada que aprendeu a usar as redes sociais agora e fica perguntando, pro mundo inteiro ouvir, coisas que antes – bons tempos – ficavam restritas aos encontros familiares : “E os (as) namoradinhos (as)?”, “Mas ainda não casou?”, “Tá na hora do neném, hein?”.
São os fiscais de postura armados até os dentes com seus “argumentos de especialistas” para condenar as fotos que postamos, os filmes que vemos, as bandas que amamos, os programas que fazemos. Tem sempre uma “safra melhor”, um “produto de excelência”, um “líder de mercado” que nós, leigos absolutos e inquestionáveis, não conhecemos, independentemente do que esteja sendo resenhado. Para eles, estamos sempre levando gato por lebre. Haja armazenamento nessa internetona sem porteira pra caber tanta chatice, tanto doutor na ciência do nada!
Perto da disputa nas urnas, o sommelier eleitoral é ainda mais insuportável e parece se multiplicar feito Gremlin embaixo de goteira. Desde que a campanha começou, tenho distribuído mais ‘unfollows’ do que o Silvio Santos disparava aviõezinhos de dinheiro aos domingos. Não preciso de palestras virtuais condenando minhas opções antes mesmo que eu faça meu pedido. Já me sentei neste restaurante eleitoral e olhei bem para a carta de vinhos. Escolhi minha safra, minha uva, e a harmonização pode não ser a mais perfeita, mas é a que eu escolhi para meu prato. Enólogos, indecisos e abstêmios certamente torcerão o nariz para o que pedi. Mas tenho o direito de escolher a bebida que quiser, pesando, na decisão, o que espero de um vinho e sendo fiel aos sabores que aprecio.
Digo mais. Ao chamar o garçom, pensei para além do egoísmo de meu paladar, buscando a escolha que seria melhor para todos que me acompanham à mesa, tenham pedido arroz com feijão ou caviar, ainda que refutem minha bebida. Peçam a própria, e brindemos todos. Democracia é isso. Mas na adega eleitoral, não me venham com sommeliers de urna, por favor. Fique com seu vinho, exalte sua cor, seus aromas, acidez, teor alcoólico, final na boca e tantas outras propriedades que ele tenha: é seu direito. Mas não o enfie pela minha goela abaixo, quero beber aquilo que escolhi e em que confio, e não o que você prefere e tem certeza de que é melhor. Ressaca de vinho dá um bode de morrer. Não arrisco tomar o seu e não preciso ser sommelier pra saber.