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Alfabetizadora premiada, Ellen vive a educação como prática da liberdade

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Autora da história, Ellen ofereceu aos alunos a criação das ilustrações da narrativa, grafitada e pintada no muro da escola que, ano passado, sofreu com pichações violentas. (Fotos: Felipe Couri)

Vovó Zenilda não usa maiô e nem faz crochê. Na praia, veste biquíni e cachecol. Ao longo da história escrita por Ellen de Paula Moreira Abreu, a avó surge cheia de cores, com uma mala repleta de objetos a despertar a curiosidade dos três netos. “Tem objetos que rimam, outros que causam estranheza, outros que trazem alegria, ou, ainda, que despertam a memória afetiva”, conta a autora, que pensou em palavras que funcionem para a sistematização da escrita alfabética das crianças para as quais a narrativa foi criada e que, na proposta de Ellen, tiveram a responsabilidade de ilustrar a trama.

“No primeiro momento, vim vestida de Vovó e trouxe uma mala com os objetos dentro. Dramatizei a história para eles, e, a partir dali, eles começaram a imaginar as cenas que desenharam. Depois, convidei um amigo grafiteiro para ressignificar o espaço da quadra (que havia sido pichada com termos violentos), tirando o grafite do lugar da agressão e levando para a arte. O Igor (Tenxu) transpôs os desenhos das crianças para a linguagem do grafite. Em novembro, com a ajuda de muitos amigos, compramos as tintas e fizemos um mutirão da escola toda e de outras também, para pintarmos tudo. Os grafiteiros fizeram o contorno, e as crianças pintaram”, recorda-se a professora.

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A mala da Vovó Zenilda ganhou forma e manteve-se aberta durante os recreios da Escola Municipal Santos Dumont em 2017. “E as crianças, brincando, aprenderam com mais facilidade. Nosso objetivo foi alcançado. Conseguimos alfabetizar a turma com os elementos da história e fizemos atividades do letramento, com o uso funcional da linguagem escrita e oral. Trabalhamos muitos gêneros literários com essa história”, conta Ellen. Do inicial e-book, o material se transformou num livro impresso, distribuído entre os participantes e para bibliotecas e escolas da cidade, que já adotam o método idealizado por ela.

“Cada escola que adota o livro dá o enfoque para o que deseja. Três escolas agora estão trabalhando o brincar, com oficinas, outras estão enfocando a alfabetização, ou, ainda, a produção de texto”, diz a profissional de 38 anos, que com apenas dois anos de formada acaba de ser reconhecida como destaque no 11º Prêmio Professores do Brasil, na categoria Ciclo de Alfabetização em Minas Gerais. Os netos da história são seus filhos. E Zenilda, a vovó, é sua mãe, mulher que, diferentemente das crianças para as quais Ellen idealizou o elogiado projeto, não teve a oportunidade de ser alfabetizada.

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O peso da água

“Fui criada no Bairro Dom Bosco, sou do Chapadão, moro lá desde que nasci. Casei lá e crio meus filhos lá. Brinquei muito naqueles morros. Tive uma infância feliz, muito guardada no Instituto Maria, onde fiquei até os 9 anos, no contraturno da escola. Estudei no Fernando Lobo até o segundo grau. Éramos muito pobres. Minha casa não tinha luz nem água. O bairro não tinha a infraestrutura que tem hoje. A gente pegava água na mina que hoje o Hospital Monte Sinai comprou. A luz era de vela, e eu fazia meus deveres debaixo do poste de luz em frente à casa da minha avó. Televisão, eu assistia na casa de um vizinho. Minha mãe trabalhava como empregada doméstica e contava situações desagradáveis pelas quais passava e dizia que a gente deveria estudar para não passarmos pelo que passava”, lembra-se, emocionada, Ellen, que, em 1998, aos 18, concluiu o magistério. “Trabalhei nas creches da Amac até 2013, quando saí para atuar como professora. Em 2012, quando comecei o curso de pedagogia, já tinha a experiência da creche e descobri que desejava ser professora alfabetizadora. Desde então, faço formação continuada, participando de cursos, para me especializar em alfabetização e ajudar as crianças. Acredito na escola pública, que é de onde eu vim e onde meus filhos estudam. Sei que o sistema não favorece o professor de escola pública, mas não desisto e estou lutando. Só pela educação vamos conseguir transformar nosso país”, defende a mãe de Victor Gabriel, 14 anos, Lucas, 12, e Gabi, 10, frutos de seu casamento de 18 anos com o químico Erivelton.

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O peso do lápis

“Meu marido trabalhava à noite e fazia o curso de química de manhã. Saía do trabalho 1h30 da manhã e estudava das 7h até meio-dia. Eu trabalhava o dia inteiro e, quando chegava em casa, dava banho, comida, colocava para dormir e estudava até meia-noite. Quando ele se formou, eu comecei meu curso. Eu não tinha condições de pagar faculdade particular, e a UFJF era ao lado da minha casa. Ela era e ainda é minha. Falo com meus filhos para estudar para estarem lá, que é um lugar de todos nós”, pontua Ellen, aos 32 anos aprovada em sétimo lugar para o curso de pedagogia, não tendo optado pelas cotas que também lhe eram de direito. Ao longo de seu percurso universitário, Zenilda, sua mãe, era presença constante. Era o fôlego. “Minha mãe, que é letrada, não é alfabetizada, falava: ‘Presta atenção na escola para aprender a ler e ajudar suas irmãs!’. Vou me tornar professora, vou me tornar alfabetizadora e vou fazer com que meus alunos leiam e escrevam, para não passar pelo que a minha mãe passou e muitas outras crianças ainda passam. Quero fazer a diferença na vida dos meus alunos”, diz ela, filha mais velha do primeiro casamento da mãe, que teve três filhas com Sérgio, pai de Ellen, e outros três filhos do segundo casamento. “A minha vida foi transformada pela educação”, emociona-se a mulher que se põe, agora, a também transformar, atuando na escola do Bairro Santos Dumont, cujas paredes estão preenchidas por coloridos grafites, frutos da parceria com uma empresa de camisetas vizinha. “Pelo terceiro ano, consegui voltar para a escola. No primeiro ano, trabalhei como professora de docência compartilhando, acompanhando um aluno com autismo. No segundo ano, já voltei como professora e comecei a desenvolver esse trabalho”, aponta Ellen.

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O peso da certeza

“Nosso bairro já foi mais tranquilo. Hoje o índice de vulnerabilidade está muito alto. Tem crianças e adolescentes envolvidos com o tráfico. E não faltam ações para ajudar a comunidade. Temos vários projetos bacanas. Tem o Vivart, o Grupo Espírita Semente, a Feak que atende a comunidade, o Dom Orione e a universidade. Tem a miséria, a pobreza, o desemprego, e muitas mãos amigas”, comenta Ellen, que de atendida passou a voluntária e hoje integra a equipe da Feak e do Semente, oferecendo reforço escolar na comunidade. “Minha realidade me mostrou que não era aquilo que eu queria. Eu não queria ficar a vida inteira carregando água e sem energia elétrica. E tinha a minha mãe o tempo todo cobrando da gente essa postura de estudante, que respeitasse os professores, não faltasse a aula. Hoje sinto falta do apoio das famílias na escola. Lembro que, para mim, naquela época, a escola representava uma oportunidade de transformação social. Hoje as famílias não veem esse potencial na escola. E isso nos incomoda. Não generalizo, porque tem muitas comunidades que são parceiras e acreditam na educação, mas a grande maioria não valoriza. Nossa rede tem sido tão massacrada, com índices baixos, mas tem muitas escolas com trabalho sério, que garantem às nossas crianças o direito de ler e escrever na idade certa”, reflete Ellen, reivindicando e mantendo-se na luta: “O alfabetizador é o mais desvalorizado. Somos fundamentais, mas não temos valor. Nem por isso desisti de trabalhar. Acredito que vá mudar. E se quero que mude daqui a dez ou 20 anos, tenho que começar agora. Se eu ficar esperando valorização ou reconhecimento, não vou conseguir fazer a transformação que acredito.”

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Leia a história de Ellen Abreu, grafitada por Tenxu e por estudantes no muro da Escola Municipal Santos Dumont
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