Pá. Pá. Pá. E o tiro final: “Se eu já cheguei até aqui, nada mais me frustra. Enterrei minha mãe antes de ontem e, hoje, nada mais me assusta”. Laura Conceição, com sua metralhadora de verdades dolorosas, encara a si mesma como o próprio alvo. No verso final de sua participação no Slam BR- Campeonato Brasileiro de Poesia Falada, que lhe rendeu o terceiro lugar nacional, a jovem de apenas 21 anos disparou contra a própria dor. Na quarta-feira (13), dia em que a mãe, Ana Lúcia, chegava ao fim da batalha que travou nos últimos dois anos, contra um tumor cerebral, Laura viajaria a São Paulo, para a etapa final da série de batalhas em versos que lhe despertou outro sentido para os dias.
“Decidi que iria, não só por mim, mas por ela também. Era um trabalho que eu construí com minha mãe e meu pai (Gerson) desde pequena. Quando era criança, fiz grupo de contação de história com ela”, recorda-se Laura, que na quinta, após o enterro, entrou no ônibus e chegou, pela manhã, na maior metrópole do país. Naquele mesmo dia venceu a primeira fase do campeonato, com todas as notas gabaritadas. Na segunda fase, repetiu o feito. Na semifinal, mais uma vez ficou em primeiro lugar. “Sempre batalhei aqui, então não tinha parâmetro do nível dos outros poetas. A final foi um momento incrível. Foi um resultado muito justo. Foi importante para vermos o quanto somos bons. Fui eu quem passou, mas poderia ter sido outro poeta daqui. Nós podemos.”
Das nove batalhas de poesia falada que participou em Juiz de Fora (que tem o Slam da Ágora, o Slam do Encontro de MCs e o Slam de Perifa) ao longo do ano, Laura venceu cinco. Em Minas Gerais, fez-se vice-campeã. Pretende voltar à batalha nacional em 2018. Também quer focar na carreira artística, inclusive investindo no grupo que mantém ao lado das rappers Thainá Kriya e Tatá Delon. Em janeiro lança clipe. “Quero gravar uma mixtape com sons meus”, diz a jovem, que tem na palavra a arma da insistência, da resistência, da existência.
‘Faço rap, logo existo’
Laura sempre escreveu. “Desde que me entendo por gente, lembro de rimar palavras. Teve um momento decisivo na minha vida, eu tinha 13 anos e estava numa aula de português, quando a professora mostrou um rap. Me antenei para aquilo, que nada mais era que as minhas poesias em cima de um ritmo, de uma batida. Nesse dia cheguei em casa e comecei a cantar tudo o que tinha escrito. Dali para frente comecei a escrever rap, não só poesia”, lembra, referindo-se a uma das potentes expressões da cultura hip-hop. “O rap é para todo mundo. Tem que respeitar os lugares de fala. Nunca vão me ver falando sobre como é uma vivência periférica, sobre como é ser negra, porque não vivo isso. Respeitando e falando do seu lugar não tem caô. Uma coisa que garanto é que meu trabalho chegue à periferia. Posso não estar lá, mas o que faço tem que chegar, porque temos que fazer o talento circular para promover outra sociedade. Querer melhorar, trazendo consigo muita gente, é hip-hop, que é a voz das minorias. Eu, como mulher lésbica, faço parte de uma minoria. E para militar é preciso se aceitar e se assumir e se fortalecer dentro de uma minoria. Falar da minha orientação sexual em alguns poemas é muito importante”, garante ela, cuja primeira participação em batalhas de slam na cidade se deu este ano, no Bairro Santa Cândida, berço do hip-hop em Juiz de Fora, e onde está a sede do Coletivo Vozes da Rua, e sua militante Adenilde Petrina, uma das mulheres inspiradoras de Laura. “Vou muito lá porque gosto de todos eles”, diz, sorrindo, a menina que também gosta de ir às escolas levando na garganta seus versos. “Para mostrar aos meninos que eles podem escrever, instigando talentos muitas vezes adormecidos”, explica, com a mesma voz grave com que critica preconceitos e injustiças. “Às vezes é preciso pôr entonação para passar uma mensagem. Com a presença, a gente consegue atrair a galera. Minha postura vem da necessidade de segurar a galera para escutar minha mensagem”, observa a autora dos versos “Sou dona de mim, dispenso grandes vaidades, as mulheres não são propriedades. Costumo não passar blush, critico o Trump e o Bush, detesto a hora do rush.”
‘Faço rap, logo resisto’
Laura sempre questionou. “As minhas temáticas principais são a mulher, a homofobia, a mulher lésbica, problemas sociais, política e, principalmente, direitos humanos. Tem poema, também, que fala de amor. Minha inspiração vem de coisas que vivo ou vejo no meu dia a dia, são questões reais”, comenta. “Falo sempre que o fato de a gente ser mulher, em qualquer meio, já significa estar resistindo. Não é preciso que a gente fale do feminismo para resistir. Estar com o microfone na mão, num lugar de fala, é uma resistência”, defende a dona de longas tranças, que, tanto como publicitária formada quanto como jornalista em formação, estuda e pratica a luta contra a misoginia. “Minha escolha vai para a ideia de garantir os direitos humanos na comunicação. Minha pesquisa e minha prática defendem que as pessoas devem ter acesso à informação de maneira justa e correta”, sugere a jovem que, ao lado de outras duas amigas, comanda um agência que promove consultoria de direitos humanos para um posicionamento adequado no mercado. “A temática do feminismo estar em alta traz pessoas oportunistas, mas é bom para que conheçam mais. Lógico que é preciso ter um aprofundamento de discussão, mas temos que pensar que uma pessoa que nunca teve contato precisa, inicialmente, desse feminismo mais superficial para começar a entender. Não adianta já querer impor algo hiperintelectualizado. O feminismo está tomando mais lugares, e isso é importante. Não é ruim estar na moda, porque consegue atingir quem não atingia antes. Isso já salva a vida de muitas mulheres”, comenta ela, integrante do coletivo de hip-hop As manas, que conta com MCs, b-girls, DJs e grafiteiras. “As meninas sempre estiveram na cena e, agora, estão unidas’, afirma a autora dos versos “Elitismo está no comportamento, não só no cartão bancário. Quem é pobre é de espírito. Quem é de amor é milionário. Fama mesmo é o reacionário”.
‘Faço rap, logo insisto’
Laura sempre militou. Filha única de um casal de professores – a mãe lecionava português e o pai ministra geografia -, cresceu rodeada de livros e cadernos. “Lembro da minha mãe corrigindo prova, e eu, pequenininha, vendo tirinhas da Mafalda para tudo quanto é lado. Meus pais sempre me estimularam a pensar e a fazer o que eu queria”, conta. “Sempre vivi muito envolvida com questões da militância, não necessariamente partidária, mas da luta por direitos. Na infância, via meus pais indo a passeatas e tudo mais. Quando entrei para a faculdade, comecei a ler, a estudar e a entender a sociedade. Muito, também, através do hip-hop, que é a voz do que não está no centro”, diz ela, que mesmo morando na Rua Rei Alberto, na casa que o avô construiu para os filhos, sempre se identificou com a periferia. Bolsista no Colégio dos Jesuítas, onde a mãe trabalhava, manteve boas notas durante toda sua formação. “Abracei a oportunidade. Era uma aluna que estudava muito. É importante usar o sistema, que te usa o tempo inteiro, para se favorecer”, sugere a escritora de sofisticação equivalente à originalidade. “Às vezes, estou recitando uma poesia e no meio faço uma flipada, acelerando o ritmo, e depois volto para o compasso da poesia. Gosto de misturar estilos e não gosto de diferenciar rap de poesia”, explica a artista de caderninho em punho para o estalo da inspiração. “Não forço”, assevera a dona de versos de embate e também de amor. “Já levei poema de amor em slam e deu certo. Eles dizem que versos de amor não têm cunho social, mas tente mudar algo sem amor e me fale se foi possível. Até nos poemas de militância tem amor”, pontua Laura, autora dos versos “Eu vim aqui marcar minha presença, tentando fazer diferença. Me chamam de sapatão, como se isso fosse ofensa”.