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As ilhas de fora da ilha de Oscar

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“Espero que o regime cubano mude, que abra as portas para o mundo e dê um pouco de liberdade para o povo”, diz Oscar e sua saudade de casa. (Foto: Olavo Prazeres)

No mesmo conto em que um de seus personagens diz que “Todo homem é uma ilha”, José Saramago escreve “que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós, se não saímos de nós próprios”. Oscar Eduardo Lorentes Torres não é parte de “O conto da ilha desconhecida”, um dos mais célebres trabalhos do socialista português. Oscar é a experiência das palavras se concretizando. Nascido na Niquero berço da Revolução Cubana e criado, desde os 6 anos, na capital Havana, o homem com seus atuais 52 anos guardou no Brasil a esperança de uma vida de mais liberdade. Conheceu, porém, outros limites. Entre opostos escreve sua história.

“A vida em Cuba é bonita, tranquila, só que, financeiramente, não tem lucro de vida para crescer. É uma vida limitada, com aquele salário de fisioterapeuta limitado para o resto da vida. Você não paga nada lá, nem saúde, nem educação, nem moradia. Lá é proibido aluguel, o que cada um tem é dele. E não é como aqui, que a pessoa tem uma casa na cidade e outra na roça. É só uma casa, mas é sua. Tem muitas casas que o governo doa. No hospital que eu trabalhava, por exemplo, o governo doava um terreno. O sindicato dos trabalhadores escolhia os melhores trabalhadores do hospital e os mandava para serem a mão de obra da construção. Você mesmo construía seu próprio prédio. Quando acabava, o governo dava o apartamento e cobrava uma mensalidade irrisória. Em Cuba tem muita coisa bacana”, elogia.

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“Em compensação, o dinheiro que ganha não dá para mais nada. Tudo é muito controlado, mas é muito bom. Adoro meu país e torço para que melhore, para eu ir embora. Espero que o regime cubano mude, que abra as portas para o mundo e dê um pouco de liberdade para o povo”, diz ele, chegado em 1997 ao Brasil. “Lembro que, quando desembarquei, o Fernando Henrique Cardoso era o presidente do Brasil. Eu não entendia muita coisa. Estava em Ubá e via televisão quando passou uma imagem de alguém jogando ovo ou tomate no Fernando Henrique. Perguntei quem era. A irmã do empresário que me trouxe me contou que era o presidente da República. Falei: ‘Está doido!’ Lá em Cuba, se jogar um papelzinho no presidente, está ferrado para o resto da vida. É o presidente, seja ruim ou regular, tem que ter o respeito pela pessoa que está acima de você”, conta, aos risos, pontuando diferenças que sempre se mostraram marcantes.

“Gosto de tudo no Brasil. Acho o povo muito parecido com o cubano, é muito gentil, muito caloroso. Acostumei-me a morar aqui”, elogia o homem que, ainda que adaptado, não conseguiu naturalizar o que cresceu entendendo ser incomum. “As leis em Cuba servem para ser cumpridas. A gente anda na rua de madrugada, pode voltar a qualquer hora, não tem essa coisa de assalto, roubo. A violência sempre me assustou. Tanto é que não vou a Belo Horizonte, Rio, São Paulo. Sou covarde para isso. Aqui você nunca vai me ver sair a pé procurando um bar para tomar cerveja. Nunca fui um cara assim. Se eu puder tomar cerveja na minha casa, bebo. Ou então fico perto de casa.”

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Acostumado com o Brasil, Oscar ainda evita viajar a grandes cidades e se expor à violência: “Em Cuba a gente anda na rua de madrugada” (Foto: Olavo Prazeres)

Vergonha é outra coisa

Crescido numa família de sete irmãos e numa casa confortável, Oscar estudou e aos 21 anos formou-se em fisioterapia. Em seguida, foi trabalhar no Serviço Militar Obrigatório, no Hospital Ortopédico Internacional Docente Frank País, em La Lisa. “O fisioterapeuta em Cuba se forma como fisioterapeuta e terapeuta ocupacional. Aqui é separado”, conta, apontando para a justificativa dada pelos órgãos competentes ao pedido de revalidação de seu diploma. “Resolvi, então, entrar numa faculdade em Ubá. Fiquei trabalhando por três anos como voluntário na Apae de Ubá, com a promessa de que a Prefeitura pagaria a faculdade para mim. Mas acabou que tive que parar porque não foi pago nenhum mês, e a faculdade não aceitou que eu continuasse”, lamenta. “Acabei ganhando, porque trabalhei por três anos numa área que gosto muito, mas perdi aquele tempo de faculdade sem ter conseguido revalidar meu diploma”, conta o homem que no presente se divide entre duas funções bastante distintas daquela na qual foi empregado nos últimos 12 anos da vida em Cuba. “Hoje fabrico lustres e deixo em lojas de decoração para vender e também trabalho em bar”, diz, para logo demonstrar a noção de igualdade aprendida na ilha. “Não sinto vergonha nenhuma de ser fisioterapeuta e ter que trabalhar como garçom. Sentiria vergonha por não ter dinheiro para comer e ter que fazer qualquer coisa ilícita para conseguir. O cubano é assim: a cada três cidadãos, um é formado em curso superior. E como os salários são tão poucos, eles preferem vender pão com manteiga na esquina. Não tem vergonha nisso”, ensina. “Os clientes do bar já me conhecem. Sou aberto, não escondo nada. Se é preciso sair daqui e ir trabalhar no cachorro-quente, não me envergonho. Com toda a fama de fisioterapeuta em Ubá, fui trabalhar tomando conta de uma metalúrgica.”

Amor é permanecer

Ironicamente, foi justamente a fisioterapia que trouxe Oscar ao Brasil. “Vim para Ubá, para fazer fisioterapia num empresário paraplégico, que era meu paciente lá em Cuba. Ele me trouxe para um contrato de trabalho de um ano e meio”, conta. “No princípio comecei a morar com ele, depois ele arrumou uma casinha para mim ao lado dos pais dele.” Quando terminou o contrato com o empresário – a fisioterapia já não era fundamental a ele naquele momento -, a namorada de Oscar descobriu estar grávida. O cubano resolveu ficar. Casou-se e pediu o visto permanente. Foi então que outro grande empresário de Ubá, pai de duas crianças com paralisia cerebral, montou uma clínica para ele. “Era linda, imensa, com tudo. Não havia melhor na região. No princípio, não sabia que tinha que revalidar meu diploma. Então, começaram a me denunciar. Procurei um fisioterapeuta para assinar pela clínica. Mas continuaram a me infernizar. E naquela época não era porque eu era o Oscar, cubano. Era porque, como a medicina de Cuba é muito avançada, todos que chegavam à clínica queriam fazer comigo. Mandaram Polícia Federal, Conselho Regional de Fisioterapia, tudo atrás de mim”, lembra, entristecido, o homem que diz nunca ter sido ofendido pela origem no país socialista, apenas por uma disputa cruel de mercado – marca do capitalismo. “Praticamente descartei a fisioterapia. Já estou cansado.”

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Oscar produz lustres e luminárias que comercializa em casas de decoração da cidade. (Foto: Olavo Prazeres)

Coragem é resistir

Há quatro anos, Oscar novamente recomeçou. Separado, mudou-se para Juiz de Fora. “Vim porque um médico cirurgião-plástico daqui, cubano também, me chamou para trabalhar com ele, como instrumentador cirúrgico. Fiz o curso e trabalhei com ele por dois anos no HTO”, afirma o pai da brasileira Maria Eduarda, de 16 anos, fruto do primeiro casamento, e pai, também, da cubana Surys, 30, mãe de seu único neto, que, como a mãe e os irmãos, mora na saudade de todos os dias. “Minha mãe já esteve em Juiz de Fora por três vezes. A saudade é imensa. Quando vou para Cubo, fico desesperado para chegar. Já quando tenho que voltar, perco o apetite e não durmo, preocupado de vir para o Brasil e acontecer alguma coisa com a família”, diz ele, há mais de dois anos vivendo ao lado de Elimar. Com uma fala que ainda entremeia espanhol e português, Oscar considera-se pertencente a dois lugares. “No princípio, passei trabalho demais com a língua. Eu parecia um mudo. Mas foi por três ou quatro meses. Comprei um dicionário e comecei a estudar”, conta ele, dizendo-se “sempre a favor de Fidel” e contra a falta de oportunidades de ascensão em Cuba. Como acompanha a política brasileira?, torna-se inevitável perguntar. “Como sou estrangeiro, não tenho direito de votar aqui. Graças a Deus, porque está muito confuso esse país, com muita política suja por aí”, diz o homem na inevitabilidade de uma resposta distinta.

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