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A gênese de Orlando, que transforma barro em peças cerâmicas

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Com o pé direito, ele acelera e gira mais e mais depressa. Com o esquerdo, para a máquina. Com os dois pés, José Orlando de Oliveira coordena a rotação do torno onde coloca uma porção de barro e, com as mãos, transforma em vaso, jarro, garrafa ou quaisquer outras peças. Num compasso particular, faz objetos surgirem. Um criador. “Não me considero um artista. Eu me considero um oleiro. Executo o trabalho que me pedem. Existe o oleiro de cerâmica e o oleiro de ateliê, que trabalha para artistas e não trabalha só com um tipo de barro. No meu ofício, eu preciso entender os tipos de argila”, ensina e mostra a argila tabatinga, depositada num monte ao lado do pequeno galpão onde produz suas próprias peças. Dali ele retira uma parte que deixa decantando. Em seguida, passa o conteúdo numa espécie de moedor chamado maromba. Da máquina saem pedaços que ele reserva e que já estão prontos para serem depositados sobre o torno, onde modela os objetos que, por um período, deixa secar até queimar em forno a lenha ou a gás ou elétrico. “Gosto de trabalhar à noite, quando é maior o silêncio e consigo ouvir o gás. Se aumentar muito o fogo, estoura a peça”, conta o homem, cujo ofício depende dos quatro elementos: água, fogo, terra e ar.

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Orlando mostra o barro, que coloca sobre o torno e modela diferentes peças. Requisitado por ceramistas da região, o oleiro tornou-se referência em seu ofício. (Fotos: Fernando Priamo)

Os dedos de Orlando são grossos. Seu corpo negro e esguio guarda a força necessária para conter movimentos involuntários do barro sobre o torno. “Tamanho de mão, de dedo, para a arte, não faz diferença. Tem gente que toca violão com o dedo grosso. Quando vejo que meu dedo não está cabendo nas peças, uso uma caneta, um palito de churrasco ou outra coisa”, explica, aos 54 anos de uma vida que, como o barro, desfaz e se refaz. “Sou filho da violência. Meu pai matou minha mãe a machadadas, quando a gente morava na roça. E meu tio, uma semana depois, matou meu pai, e eu estava na garupa do cavalo dele. Nesse meio tempo, fiquei em casa com minhas duas irmãs. Eu tinha 9 anos. Meu pai adotivo é o militar que foi fazer a ocorrência. Ele, que era cabo na época, me levou para a casa dele, porque tinha muita criança, e eu fui ficando, ficando”, narra ele, nascido em Uberaba, no Triângulo Mineiro. “Não condeno ninguém”, diz Orlando, que também não se interessa em procurar os parentes com os quais nunca mais conviveu. O criador sempre soube se recriar.

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Da terra

O sonho do pai era ver os 11 filhos militares. Porém, essa não era a escolha de Orlando. Prestes a ir para se alistar, e já morando em Monte Carmelo, ele discutiu com o pai, que lhe deu um tapa no rosto, e o rapaz saiu pela cidade. Na andança, chegou à Lassi Cerâmica Artística, fábrica que produzia filtros de barro, e ficou olhando as pessoas trabalhando. Conhecido por Negão, foi chamado a ajudar e, forte, passou a carregar os pesados vasos. Tornou-se funcionário do local, fez a pazes com a família e, um dia, enquanto brincava num torno, a proprietária da fábrica, dona Floricinda, que viu de longe suas tentativas, ordenou que ele passasse a trabalhar transformando o barro em objetos. Dos filtros, passou a moldar as peças mais delicadas. “Deus me deu um talento”, diz. Em pouco mais de um ano, chegou o primeiro convite: mudar-se para Montes Claros para trabalhar em outra fábrica de cerâmicas. Depois transferiu-se para Cuiabá e, inclusive, dividiu seu tempo entre um ateliê e o ensino da cerâmica artística para os índios da região. Ganhava bem, e gastava bem também. Voltou para Uberaba e, há pouco mais de 30 anos, aceitou uma proposta em Juiz de Fora. “Eu queria conhecer o mundo”, diz o homem destemido para o trabalho e absolutamente sensível para os transtornos do cotidiano.

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Do fogo

Em Juiz de Fora, Orlando conheceu uma mulher. “Em oito dias, começamos a namorar, em 30, noivamos e, em 60, casamos. Foi tudo louco. Eu sempre fui louco para ter filhos. Depois de um ano e pouquinho, entramos no assunto de ter filhos, e ela falou: ‘A gente não tem onde morar e vamos pensar em ter filhos?’. Eu falei, então, para fazermos um lugar para a gente morar. Virei o chapéu para trás, com gosto de gás. Eu trabalhava em duas portarias de 12 por 36 horas. Uma noite eu estava em um, e na outra, no outro trabalho. De dia eu funcionava para duas cerâmicas. Eu tinha quatro trabalhos, por 12 anos. Comprei terreno e fiz duas casas no Sagrado Coração. Quando acabei a casa, falei com a mulher: ‘Agora você pode parar de tomar remédio’. Mas ela me disse: ‘Nunca gostei de criança’. Aquele foi o pior dia da minha vida. Ficamos mais dez anos até que chegou ao fim”, narra Orlando, sobre a relação que durou 27 anos e lhe rendeu um sofrimento sem tamanho. “No primeiro ano de separação, eu me perdi. Só não usei droga, mas tomei todas e falhei todas. Bebia cachaça, uísque, vodca, tudo. Tenho o seguinte raciocínio: aquilo que você tem que passar, é você quem tem que passar, e o que eu tenho que passar, só eu tenho que passar. Hoje acho que tive um desespero e um desamparo pela decepção.”

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Da água

Quando era porteiro, uma moradora chegou com um peça de cerâmica e mostrou para Orlando, que detalhou todos os erros e acertos do objeto. A mulher, então, colocou em contato Orlando e a professora. Foi assim que o oleiro conheceu a ceramista Adriana Lopes, passou a trabalhar com ela, inclusive viajando a Natal, onde ela foi morar. “Eu não conhecia praia, nunca tinha ido. A primeira vez foi lá”, lembra o homem que, por intermédio de Adriana, conheceu a escultora e ceramista Léa Diegues, que atuava no Instituto Inhotim e o convidou para se tornar o oleiro do maior museu a céu aberto do mundo. De dois em dois meses, ele passava uma semana produzindo peças artísticas para o instituto. “Bernardo Paz sentou de frente para o meu torno e disse: ‘Esse é o cara!'”, recorda-se ele, que num desses momentos no espaço produziu uma garrafa a pedido da artista plástica Adriana Varejão, ex-mulher do fundador do Inhotim. “Já tive muito dinheiro, tive carro zero, casa e tudo do bom e do melhor”, diz o homem que hoje mora numa casa alugada no Grama, próximo ao galpão que divide com uma serraria e onde passa pouco de seu tempo, já que se mantém trabalhando para ceramistas de Juiz de Fora e Tiradentes. Pouco a pouco, Orlando se ergue, como se barro fosse, como se no torno estivesse. “Minha ideia para o próximo ano é tentar ter meu espaço próprio.”

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