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Nirlene: A vida entre cálculos matemáticos e notas musicais

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Nirlene, aos 55 anos, é instrutora da área de música do Sesc em Juiz de Fora e professora de matemática no Colégio Adventista do 6º ano ao ensino médio. (Foto: Fernando Priamo)

“As coisas aconteciam com muita dificuldade na minha casa. Meus pais não tinham muitos recursos. E desde cedo eu comecei com a minha irmã a fazer faxina. Eu chegava da aula e ia fazer faxinas, pelo menos três vezes por semana”, recorda-se Nirlene Faria de Souza Neves. Tinha 8 anos, apenas. Passados 47 anos, as lembranças do trabalho precoce divide espaço com os alegres estímulos musicais feitos pelo pai. Maquinista dedicado e músico talentoso, ele deixava lições a serem feitas durante o período em que estaria fora, trabalhando sob trilhos. E cobrava empenho dos seis filhos. “Desisti por duas vezes, porque ele pegava muito pesado ao dar as lições. Uma das coisas que me marcaram muito foi que não tínhamos condições de comprar instrumentos, então, nosso instrumento era a voz.”
No lixo, quando voltava da escola, Nirlene encontrou um violão com o braço quebrado e sem as cordas. “Uma amiga me arrumou uma cola branca, e eu passei. Lembro de ficar treinando como se ele tivesse cordas. Um belo dia, ela falou que um colega havia jogado umas cordas fora, e ela havia se lembrado de mim e pegado. Claro que eu queria. Para mim foi uma realização ter um violão com cordas. Aí passei a me dedicar muito mais. Depois fui para o sax e para outros instrumentos”, conta. “Chegava a estudar dez, 15 horas direto. No violão, eu sou autodidata, no teclado e no sax, também. Não tinha recurso de YouTube, nem nada. Algumas vezes, quando vivi em São Paulo, cheguei a ir treinar com o pessoal da EsPCEx, onde tinha um amigo do meu pai que era regente da banda. Na maioria das vezes, eu conseguia livros emprestados, tirava xerox e estudava em casa.”

Serenata do adeus

Cedo, também, Nirlene conheceu o silêncio da morte. Aos 13, perdeu a mãe, empregada doméstica e lavadeira, vitimada por um problema renal. Era momento, então, de arrumar as malas e despedir-se da Bicas onde nasceu. Ao lado de um dos irmãos, ela se mudou para uma casa de dois cômodos no Bairro Nossa Senhora Aparecida. Passou a dar aulas particulares. “Estava no fundamental, mas já dava aulas”, conta ela, que via seu dinheiro se somar ao do irmão, lanterneiro numa empresa de ônibus. Em Juiz de Fora, Nirlene continuou os estudos e fez o curso técnico em edificações e estradas. Transferido para São Paulo, o irmão, já militar, convidou Nirlene para outra grande mudança. Na maior capital do país, onde permaneceu por uma década, ela ingressou no curso de engenharia, quando descobriu o desejo de ser professora. Nesse tempo conheceu o marido, Cristiano. Nascido em Salvador, mas radicado desde a infância na capital paulista, ele se encantou por Juiz de Fora e convenceu Nirlene a regressar. No projeto do casal estava a abertura de uma empresa de produtos de limpeza e continuidade dos estudos. O negócio, no entanto, naufragou. “Começamos do zero de novo. Nesse período, chegamos a passar necessidades. Tinha dias que não tínhamos o que comer. E eu não queria contar para o meu pai. Passamos muito sufoco, quisemos voltar, mas insistimos”, lembra.

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Nascida em Bicas, Nirlene mudou-se para Juiz de Fora aos 13 anos, quando a mãe morreu. Em sua trajetória, já passou por São Paul0, onde morou por dez anos, e hoje sonha em conhecer a Itália, onde está uma tela feita em sua homenagem. (Foto: Fernando Priamo)

Canção da valentia

Na hora exata, quando já sumia sua resiliência, Nirlene empregou-se na Mercedes-Benz, primeiro na linha de produção e, depois, no setor de qualidade. Estava dada, portanto, a oportunidade de voltar à sala de aula. E ela fez o curso de matemática e também um curso de música. Hoje, é instrutora da área de música do Sesc em Juiz de Fora e professora de matemática no Colégio Adventista do 6º ano ao ensino médio. “Trabalho muito com a matemática musicalizada. Levo meu violão e incentivo os alunos a criarem fórmulas com música”, conta ela. O marido é educador físico e atua como personal e instrutor de Tai Chi Chuan terapêutico. Vivem numa casa no Bairro Democrata, onde Nirlene estuda para concretizar o sonho de fazer mestrado em música ou em matemática. Também pratica sua música. “Tenho muitos alunos que hoje são da banda do Exército, da Marinha, da Aeronáutica, do Corpo de Bombeiros”, conta ela, que dava aulas particulares e na Igreja Batista, onde foi regente do coral por muitos anos. Ainda, trabalhou, por dez anos, com o Coral Angels, da Primeira Igreja Presbiteriana de Juiz de Fora. Em 2013, foi convidada para formar um coral que acompanhasse o cantor gospel norte-americano Ron Kenoly em sua visita ao Brasil. Em dez dias montaram 14 músicas. “Passei noites sem dormir escrevendo partituras”, lembra ela, cujo pai, exímio trombonista, é regente do Coral da Igreja Assembleia de Deus aos 85 anos.

Balada da viagem

Em tempo, Nirlene identificou que precisava de uma técnica para o ensino das notas musicais. Os alunos tinham dificuldade em aprender o pentagrama. Num dia, ela sonhou com uma técnica que aplica nas mãos as notas musicais. Foi então que uma aluna, a artista Leila Huguenin, pintou um quadro em homenagem à professora, que, inclusive, dá nome ao trabalho. Depois de mais de um ano, Leila enviou uma mensagem à mestra, contando que o quadro havia passado por diferentes países europeus, sido premiado numa feira de artes e adquirido por um museu no Vaticano. Na tela, estão registradas a mão com as notas musicais, o primeiro violão, teclas de um teclado, um saxofone, notas musicais e um pequeno espaço em branco a representar a história que Nirlene continua a escrever. Um memorial da mulher que não se despe do sorriso nem para se lembrar das passagens mais traumáticas da vida. Apesar de reverenciada, Nirlene não viu a pintura. E deseja ver. “Meus alunos estão fazendo rifas, passando milhas de cartão de crédito para mim, se mobilizando para que eu possa ir em dezembro ver a obra ao vivo”, alegra-se ela, que se equilibra entre notas musicais e cálculos musicais. “Valeu a pena meu pai ter insistido comigo. Vale a pena ter um objetivo, caminhar, estudar, buscar conhecimento. Minha trajetória parecia ficar perdida, mas ganhou um rumo com a música. Música toca a alma, é sentimento. E música é matemática também. As figuras musicais funcionam em frações: uma inteira, metade, 1/4, 1/8,1/16, 1/32, 1/64 e por aí vai. São áreas que estão totalmente ligadas. A música soma, divide, multiplica, subtrai. Se me perguntarem do que gosto mais, a balança fica equilibrada. Paro para estudar música e da mesma forma faço com a matemática. Passo noites estudando, sem peso algum.”

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“Valeu a pena meu pai ter insistido comigo. Vale a pena ter um objetivo, caminhar, estudar, buscar conhecimento. Minha trajetória parecia ficar perdida, mas ganhou um rumo com a música. Música toca a alma, é sentimento. E música é matemática também”, diz Nirlene. (Foto: Fernando Priamo)
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