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Estar bem em algum momento

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Foi necessário ir até a farmácia. A fila funcionava como um daqueles jogo de celular: enquanto uma carreira era desfeita lá na beirada, surgia outra pessoa no final. Desse modo, quanto mais gente entrava no estabelecimento, mais gente se acumulava do lado de fora. Enquanto isso, muitos elementos novos para se acostumar ao mesmo tempo. Os óculos embaçados pelo uso da máscara, a preocupação em manter a distância recomendada, a intranquilidade insconsciente de tentar ler nos outros algum sinal de ameaça. Percebo, listando tudo isso, que a impaciência comum das filas nunca me fizeram falta.

Até chegar à farmacia, aproveitando a saída para resolver uma série de assuntos pendentes, passei por outras ruas e galerias. Me entristeci com o cartaz de aluga-se colado na porta de aço frio da minha loja de sucos favorita. Imediatamente pensei na moça que pegava os pedidos, no senhor que fazia os sucos e perguntava se estava do nosso gosto. Algumas outras lojas e estabelecimentos que costumava frequentar também estavam fechados. Passando diante deles, me lembrei da vendedora, que pouco antes de a pandemia ser anunciada, aguardava a chegada de sua primeira filha.

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Eu pensava nos rostos, nos nomes e nas vidas dessas pessoas e de muitas outras. Desci a Marechal e notei a ausência dos camelôs e de suas bancas. Ao mesmo tempo havia muito mais gente vendendo toda a sorte de objetos. Mas o movimento não era o mesmo. Havia menos pessoas nas lojas, o silêncio da espera e dos braços cruzados.

Porém, a vida tem seus meios de lembrar que alguma coisa nesse quadro estranho e sem cor ainda funciona. Voltando à fila da farmácia, depois de todo esse trajeto, havia um grupo de artesãos vendendo seus produtos. Eles estavam sentados no chão. Entre eles, um fazia a função de DJ. Elogiei mentalmente a seleção, que até então já tinha tocado Raimundos, Legião Urbana e Secos e Molhados. Por alguns segundos, desviei a atenção do andamento da fila.

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Uma família aguardava alguém que estava na farmácia. Havia uma senhora em uma cadeira de rodas, uma mulher com uma menina pequena no colo e um homem. A garotinha estava inquieta. Se desvencilhou dos braços da mãe, deu alguns passos vacilantes e se colocou em frente à caixa de som. Dançou como se ninguém estivesse olhando. Os passinhos desengonçados e a alegria dela pararam o trânsito da tarde cinza da Halfeld.
Com seus olhos vivos, o cabelinho preso no alto da cabeça e uma blusa estampada com florzinhas, aquela criança não dava sinais de que queria parar. Seguia atenta à música e provocava sorrisos nos artesãos. A mãe acabou pegando novamente a garotinha no colo quando alguém andando rápido quase esbarrou nela. Mas a dança continuou dentro do abraço da mulher.

Um rapaz que produz conteúdo na internet sempre repete que espera que sua audiência se sinta bem em algum momento do dia. A crueza das dificuldades e desafios que vivemos parecem querer nos fazer esquecer de encontrar e destacar esses carinhos espontâneos deixados nos nossos dias. Brota disso uma névoa de raiva, insatisfação e desesperança, até mesmo em quem costuma ver o copo meio cheio. Mas vem uma menininha carismática e nos faz recobrar a graça que tem estar vivo. Não foi e não é, como Renato Russo lembrava na música, tempo perdido.

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