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Embaixo da ponta do iceberg

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Três amigos meus foram infectados pela Covid-19 praticamente ao mesmo tempo. Eles vivem em cidades e estados diferentes, e a primeira reação que tive, movido pela preocupação, foi mandar mensagens para os três para saber como estavam, como se sentiam. As respostas vieram com a descrição dos sintomas e com certa dose implícita de: “não se preocupe, vou ficar bem!”. Volta e meia me pegava pensando neles, em como as nossas relações são alteradas pela dinâmica da pandemia e em como mesmo que eu me esforçasse, não conseguiria ter noção exata a respeito do que eles passaram nesse momento.

Antes dessa loucura toda, quando éramos informados sobre alguém que estava doente, sabíamos que isso renderia uma visita – caso não fosse uma doença infecciosa -, o oferecimento da escuta ou de uma ajuda para fazer algo. Ao chegar em casa dessas visitas, ainda fazíamos uma ligação para saber se tudo permanecia dentro dos conformes. Em tempos de isolamento social, nos resta comemorar, à distância, a recuperação das pessoas queridas.

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Por vezes, nos vemos diante do luto de pessoas muito queridas ouvindo o choro pelo telefone, e ficamos sem palavras que possam expressar a nossa solidariedade diante da dor delas. Não tem sido possível oferecer o abraço que sempre entra como comunicação quando falta o que dizer. Isso nos leva, em muitos episódios, a sentimentos de irritação, de impotência, de cansaço e até de ira.

Perdi as contas de quantas vezes ouvi relatos de pessoas descontando suas frustrações em outras, e, isso, de alguma forma, tem me mobilizado muito nos últimos dias. Estar em ambientes mais restritos, convivendo com menos pessoas, nos obriga a voltar as atenções para o que acontece no nosso núcleo mais íntimo, no interior de nossas casas, dentro das coisas que sentimos.

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Nesses instantes em que damos vazão ao que nos fere, deixamos de ver quem está na nossa frente. Dizemos palavras rudes, nosso gestual se torna menos amigável. Nossas dores tomam a nossa voz. Imersos no interno, as pequenas feridas tendem a ficar maiores. Nesse contexto, é mais importante que nunca lembrar que todos estamos afetados pelas questões impostas pelo contexto que vivemos de alguma forma.

Ao passo que focamos em nossas turbulências, deixamos de perceber as lutas que as outras pessoas estão travando: alguém busca se curar de doença sozinho, sem a família por perto; o outro pode estar em uma situação desesperadora pela falta de trabalho; aquele não tem nada no armário para oferecer a seus filhos; outra pessoa pode estar preocupada com o tratamento de um familiar que foi interrompido; uma conhecida pode estar sofrendo violência doméstica e não ter conseguido meios de denunciar; um vizinho pode estar sofrendo com uma depressão profunda.

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O que lemos externamente como silêncio, afastamento ou como algo menor pode ser só a ponta de um iceberg gigantesco do qual não temos dimensão. Diante disso, creio ser fundamental, mais do que nunca, não acreditar apenas nas nossas percepções. Buscar ponderar apontamentos, críticas, fazer um esforço para deixar as palavras difíceis, que teimam em ser ditas, de lado. O momento é de dificuldade para todo mundo, e é melhor não ter que lidar com a consciência culpada por palavras insensatas, que podem machucar alguém. Quando for possível, precisamos praticar mais o cuidado e a responsabilidade com as outras pessoas.

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