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Apenas um rapaz latino-americano

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Tarefa inglória é falar sobre si. Qualquer apresentação de algo meu me causa uma inquietação absurdamente desnecessária. Rói meus intestinos, rouba meu sono. Espaços em branco, seguidos de alguma sugestão: “fale sobre você”, ou “conte algo sobre sua biografia” me causam arrepios. Quem é você? Eu levaria uma vida toda tentando responder e falharia miseravelmente. De maneira prolixa, me alongaria para mais de quilômetro e decepcionaria meu interlocutor. Essa inquietação surgiu quando eu pensava em como me apresentaria a você, caro leitor. Quão engessadas e tristes costumam ser essas definições. Nesses espaços curtos cabem as informações mais duras, aquelas que são preenchidas com letras de imprensa nos nossos documentos. Mas elas não dão conta de representar o que nós somos. Elas não têm o menor cabimento.

Vamos muito além do que o nosso RG é capaz de contar sobre nós. Embora ele possa sugerir informações interessantes. Meu lugar de nascimento, por exemplo. Diz muito sobre quem eu venho sendo. Um completo jagodes, largando um bocado de pequenas consequências da falta de jeito por aqui e acolá, mas só isso não me define. Aquele menino de 14 anos que me encara na foto 3X4 não me representa há muitos anos. Não sei nem como ainda não implicaram com os meus documentos desatualizados. Nada a ver com quem sou agora. As complexidades de sentimento, de como me coloco no mundo, de como me relaciono e vivo foram se modificando, se ampliando. Foram construídas, desconstruídas, destruídas e reorganizadas várias vezes. Esse processo contínuo de mudança não me permite fixar em uma descrição fechada, pronta. Embora seja muito grato àquele moleque, já caminhei muito, estou muito distante.

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Daqui a cinco minutos, já sou outro, bem como dizia Heráclito, que ninguém entra duas vezes em um mesmo rio. As águas não são as mesmas, assim como os seres, que ao passar de novo por elas, já se modificaram. Nunca entendi muito bem aquelas pessoas que batem no peito e dizem: “Sou assim e pronto”, ou “isso faz parte da minha essência, e eu não tenho como mudar”. Eu me pergunto: como é possível? Se a maior capacidade do ser humano é se adaptar. Há quem sobreviva ao deserto debaixo de temperaturas escaldantes, assim como há pessoas habitando os confins polares desse globo, sobrevivendo abaixo de zero. Não há quem consiga viver parado no mesmo lugar, alguma coisa, ainda que sutil, mexe com a gente de alguma forma.

Nem que seja só o arrepiar da pele. Alguma coisa nesse momento já foi alterada e não é o que foi há alguns instantes. O mutável faz parte dos nossos genes, está pelo corpo e pelo mundo todo.

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O ser humano conseguiu superar as situações mais adversas. Ter consciência do que fomos é essencial. Mas é ainda mais importante ir em frente. Essa mania de uma definição rápida, rasa e superficial ainda vai nos jogar no buraco. Porém, agora temos uma oportunidade de nos conhecermos melhor. A única coisa que não muda muito por aqui é o gosto por uma boa prosa. Por hora, basta parafrasear Belchior. “Sou apenas um rapaz, latino-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior”. Muito prazer! A gente se vê ‘logo ali’!

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