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As estrelas também morrem

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Eu já tenho alguma intuição sobre a lista das cinco músicas que o meu aplicativo habitual vai dizer que são as mais tocadas do ano. Nessa fase é fácil identificar quais foram as vozes que fizeram a trilha sonora do ano. Pode ser que o algoritmo traga uma surpresa ou outra, listas sem pé nem cabeça que incluem faixas aleatórias. Mas os rankings, inevitavelmente, seguem ao pé da letra o que digitamos no espaço de busca e mantemos no radar de preferências, numa repetição, por vezes, constrangedora e exagerada.

A verdade é que a arte, de maneira geral, é mais que nunca uma preciosa e necessária companheira. Quando não tínhamos acesso frequente a rostos e timbres conhecidos, era a imagem e a voz dos nossos artistas favoritos que preenchia o espaço e o tempo.

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Recorri muitas vezes à parceria “Calma, Respira” de Drik Barbosa e Péricles, quando precisava me lembrar de que a vida é movimento, que precisamos reconhecer cada passo da trajetória e continuar em frente, aceitando que há dias em que não estamos mesmo bem. Buscava “Principia” do Emicida toda vez que algo me tocava, que eu precisava buscar uma conexão, não havia outra que alcançasse tão bem essa necessidade.

Faltou alegria, o balanço de “Antes de tudo” e “Baby 95” de Liniker e “Onda” de Cassiano estavam lá para me fazer bem. Quando eu precisava me lembrar que sou amado, Luedji Luna cantava “Bom mesmo é estar debaixo da água” e eu não me sentia mais sozinho.

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A arte ajuda a colocar em palavras e melodias o que não conseguimos expressar de outras formas. Essa manifestação tão pessoal, que conversa com cada pessoa de uma forma, pode ajudar a passar por muitas coisas. Eu liguei a TV e me deparei com o relato de uma moça que passou por um câncer. Ela narrava que o que a ajudou a se manter centrada naquele período foi estar conectada às canções de Marília Mendonça e de Maiara e Maraísa.

Nesses dias, após o acidente que vitimou Marília, fiquei pensando em quantas pessoas vivem histórias das quais as músicas dela se tornaram trilhas sonoras. Em um exemplo rápido, pensei num trecho que diz: “Para de insistir, chega de se iludir/O que ‘cê ‘tá passando, eu já passei e eu sobrevivi/ Se ele não te quer, supera”. Quantas pessoas vimos passar por relacionamentos abusivos, que precisavam de um conselho como esse? Quantas dores e amores não ganharam uma voz por meio do canto dela?

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Fato é que as estrelas também morrem, a despeito de qualquer expectativa que possamos depositar sobre elas. Causando espanto, perplexidade e lembrando a todos nós do dolorido encontro com finitude, que passamos a vida fazendo questão absoluta de ignorar e negar.

Quando uma estrela morre, deixa um rastro de luz, não some. Ela se transfigura em algo para além da matéria. Imprevisível. Ela se projeta para além, deixa marcas na cultura, se mantém viva e presente pelo que produziu em vida. Vai continuar contando histórias, ressignificando vivências, acompanhando trajetórias, toda vez que um algoritmo desavisado indicar entre as nossas preferidas alguma da Marília. Uma estrela não passa batida em lugar nenhum. Ainda que ela não esteja no topo da lista, vamos reconhecer que o brilho que tem não é ordinário. Ele constrói e modifica, enquanto ilumina, aconselha, aconchega, causa reconhecimento. O resultado natural de tudo isso deveria ser a valorização da arte, a busca por torná-la cada vez mais acessível a todos. Mas ainda falta muito.

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De todas as funções que a arte tem, essa talvez seja uma das que eu mais gosto. Tornar compreensível o que o mundo tem de menos amigável. Tratar de temas que não estão sempre presentes nas conversas. Criar imagens que causem uma identificação pessoal, com algo que era muito particular de outra pessoa. Que pode, inclusive, se descolar completamente da intenção primeira com a qual foi compartilhada, porque assume um significado próprio ao tomar contato com a pessoa que recebe aquela mensagem. A arte é uma das únicas maneiras de superar a morte. Ela permanece, atravessa o tempo e sempre descobre novas formas de encontrar sentido.

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