A alteração da política nacional sobre drogas, defendida por projeto de lei aprovado no Senado, o qual facilita a internação involuntária de usuários, tem como uma de suas sustentações ideológicas a epidemia das drogas no Brasil, agravada pelo consumo de crack. De fato, não se pode minimizar um problema dessa gravidade, porém impedir que a população conheça sua real dimensão reforça a ideia de que existe outros interesses, que não a saúde pública, por trás da proposta e da mudança de orientação para o tratamento das pessoas que fazem uso problemático de álcool e drogas.
Desde 2016, uma pesquisa da Fiocruz que custou R$ 7 milhões aos cofres públicos não teve seu resultado reconhecido pelo governo Temer e nem pelo atual. Trata-se do 3º Levantamento Nacional Domiciliar sobre o Uso de Drogas, encomendado pela Secretaria Nacional de Política de Drogas, a Senad, órgão do Ministério da Justiça. O documento contradiz a ideia de epidemia ao apontar que 0,9% da população usou crack alguma vez na vida e 0,1% no último mês. Os números foram colhidos em mais de 300 municípios brasileiros, a partir da entrevista de 16.273 pessoas. Eles apontam ainda que o álcool, droga lícita no Brasil, já foi consumido uma vez na vida por 66,4% da população e por 30,1% nos últimos dias.
Observado a partir desse foco, o uso de álcool, que apresenta maior impacto na saúde das pessoas e nas contas públicas, não ocupa o mesmo lugar, no discurso político, de periculosidade, do medo e da destruição da família brasileira e da sociedade como o crack. Estranhamente, o governo que contratou a pesquisa não reconheceu os resultados dela. O argumento para engavetamento do estudo é que a Fiocruz não atendeu aos requisitos do edital, uma vez que a metodologia aplicada não permitiria a comparação de resultados com o primeiro e o segundo levantamentos. Por sua vez, a Fiocruz nega o descumprimento do edital e segue aguardando a anuência do Senad para a divulgação dos números.
Como o trabalho permanece engavetado, a impressão que dá é que o resultado incomoda porque vai na contramão de um dos principais argumentos para a manutenção das comunidades terapêuticas, geridas pelas igrejas, na política de saúde mental. Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, publicado pelo Conselho Federal de Psicologia, no ano passado, aponta que boa parte dessas instituições usa a religião, o trabalho forçado e a privação do direito de ir e vir para tratar usuários com histórico de dependência química. Com a nova política, elas ganharam não só mais status, como também vultuosa injeção de recursos a partir de assinatura de contrato com 216 novas comunidades ao custo de R$ 153,7 milhões ao ano. As vagas, que em 2017 eram em torno de duas mil, saltaram para 10.883 agora. Se o interesse que move uma questão séria como essa não for o indivíduo, o Brasil caminhará na contramão da política que zela pelo cuidado singular dos sujeitos. A pior epidemia é a da ignorância.