“Um dia meu filho de 5 anos me perguntou por que os pretos dormem na rua e são pobres. Expliquei que é um resquício da escravatura, que estamos tentando mudar isso, mas que é difícil. Não sei se ele entendeu. Às vezes, nem eu entendo. Sendo negro em um estado racista como o Rio Grande do Sul, eu me acostumei a ser o único da minha cor nos lugares que frequento.” O desabafo é de Márcio Chagas da Silva, árbitro de futebol e comentarista de TV em entrevista ao Uol.
Em um depoimento emocionante, Márcio falou sobre os xingamentos que ouviu durante anos a fio em campo e ainda ouve por causa da sua cor, sem conseguir esquecer da frase mais cruel: “matar negro não é crime, é adubar a terra”, revelou.
As declarações do ex-árbitro, apesar de chocantes, apenas escancaram o que é fato no Brasil: o racismo está saindo do armário. A imagem de que o povo brasileiro é cordial e tolerante ruiu faz tempo, sendo tão falsa quanto a ideia de que não existe preconceito de raça e de classe no país.
O premiado documentário de animação “A Guerra do Brasil”, produzido pelo Globo, confirma essa realidade ao mostrar que a história do país tem sido construída debaixo de violência. O número de mortes violentas no Brasil nos últimos 15 anos é maior do que o de guerras da Síria e do Iraque ou de qualquer conflito armado ocorrido nesse período ao redor do mundo. Ao todo ocorreram 781 mil assassinatos no país entre 2001 e 2015. É como se uma Lisboa e meia tivesse sido exterminada.
Nós não só matamos mais do que a soma de todos os homicídios ocorridos na América do Sul, como escolhemos quem deve morrer, transformando negros em alvos preferenciais. De todos os assassinados nesses anos, quase 500 mil vítimas eram pardas e negras.
Por isso, negar o racismo e a intolerância nossa de cada dia é não só ignorar os mais de 500 anos da história do Brasil, como fechar os olhos para a atualidade. Fazer silêncio sobre esse tema é contribuir com a omissão criminosa que fortalece o abismo social e, claro, econômico entre brancos e negros. Julgar o racismo superado é a pior forma de cinismo.
Em mensagem deixada no Instagram de Márcio Chagas da Silva, o ex-árbitro ouviu de um torcedor que o seu desejo era enfiar “uma banana em seu rabo”, escreveu o sujeito com nome e sobrenome. Mais tarde, cascas de banana foram colocadas no cano de descarga do carro do comentarista. O mais incrível é que nada disso é capaz de causar indignação.
Um dos maiores aprendizados que o jornalismo me trouxe em 23 anos de carreira foi o exercício de vestir a pele do outro. Você seria capaz?