Apesar das pinturas da figura esguia e muito sisuda, pelas tintas de Guignard, Portinari ou Ismael Nery, Murilo Mendes, acreditem, jovens, foi adolescente.
Há cem anos, mas foi.
E desde aquela época, um seu pequeno epigrama juvenil já dava conta do destino do Paraibuna.
“Eu tenho uma pena do Rio Paraibuna”, confessou o poeta juiz-forano em “A idade do Serrote”.
O Paraibuna não tem escolha: tem que atravessar Juiz de Fora, coitado.
Consta que o nome deriva do tupi “pará y b’una”, algo como “grande rio de águas escuras”.
Mas seria essa escuridão a cor de chorume que hoje escorre largamente pelo seu leito?
Ou o que viam os índios era um rio pardo onde abundavam traíras, bagres e mandis, surubins, piabanhas e lambaris?
Pois hoje o leito do Paraibuna é de matar.
Os animais que ali proliferam são os que se alimentam de dejetos e putrefação.
Cágados. Pássaros carniceiros.
E não se enganem com o vicejo das capivaras e suas crias alegres ao largo do rio, mascando sem parar o capim verde da margem: são pobres refugiados de áreas desmatadas, vivendo à beira do lixo acumulado, expulsas de seus lares pela especulação imobiliária e pelo frenesi do progresso industrial.
(o homem é o pior dos predadores)
Dirigindo desde a Zona Norte no último sábado, agarrado no tráfego do meio-dia a partir da ponte de Santa Terezinha até o Viaduto Augusto Franco, vi essa água cor de chumbo incapaz sequer de refletir o azul do céu entre nuvens.
E vi faróis de motocicletas boiando entre baldes quebrados. Bonecas indesejadas e fraldas descartadas. Carcaças de televisores. Roupas rasgadas, pneus carecas e sacolas plásticas de todas as cores desbotadas.
Vi tudo isso e me senti aliviado por Murilo, que em sua angústia impúbere não sabia o quanto o Paraibuna seria digno de pena dali a uma centena de anos.
Pois tem que aceitar tudo, esse pobre rio, jardim fluido da desova. Dos rolos da Carriço Film a cadáveres de mulheres violentadas sob suas pontes.
Hoje, faz ainda mais “força para atingir os pés do pai Paraíba”, como observou o poeta-profeta.
E o que leva em si senão a versão distópica de uma profecia centenária?