Por um ano e meio, boa parte das nossas experiências culturais foi comprimida no formato das telas de televisores, computadores, tablets, celulares. Show de rock? Tela. Teatro? Tela. Lançamento de livro? Tela. Exposição de artes visuais? Tela. Não havia ambiência, não havia profundidade, tudo pasteurizado ali na superfície rasa e azulada de nossos dispositivos eletrônicos. Tudo condensado, mais do mesmo reduzido a uma imitação barata e desengonçada da verdadeira experiência cultural de tela: o cinema.
O show de rock foi feito para bares, clubes e arenas, o teatro para os palcos, o lançamento de livro pra gente conversar com o autor e a exposição de artes visuais pra gente passear, parar, admirar, se aproximar, se distanciar. E esperar o cantor, a atriz, o autor, o artista ao final e abraçá-lo e falarmos o quanto gostamos do seu trabalho, mesmo que seja mentira, que tenha sido uma bomba. Mas até o exercício da falsidade é melhor na presença física de quem xoxamos.
O cinema, não. O cinema nasceu para a tela. E dele a tela se fez grande. Ele é, em última instância, o espírito da tela. Numa sala de cinema a gente senta na poltrona, pipoca no colo, aguardando com ansiedade o apagar das luzes, os trailers do que veremos nas próximas semanas e, por fim, o milagre da luz. Há no cinema um ritual que não se repete com sua irmã menor, a televisão, nem com os bastardos de DNA difuso, celulares, computadores, tablets.
Não se pode, no cinema, aguardar a mocinha ao fim do espetáculo para prestar seus cumprimentos, nem o bandido para tacar-lhe a mão na cara. Por lei pétrea, apagam-se os atores com o acender das luzes. E a história que acabou de se contar é assunto para ecoar na sorveteria ao lado, no boteco em frente, no carro de volta para casa.
Sua sala, cinéfilo leitor, não foi desenhada para o cinema. Ela serve pra ver televisão. Netflix. Jogo de futebol. Receber visita. Dormir. Ela não isola o som da descarga do banheiro nem o latido dos cães. Não impede a invasão das crianças nem o rugir da chuva. A não ser que você seja um chatão, não há em sua casa um código de conduta que privilegie o cinema sobre todas as coisas.
Para quem gosta de cinema, desde que se inventou o VHS e mais agora, com o streaming, a maior parte dos filmes é vista em casa mesmo, é claro. E é ótimo. É confortável. É vasto. Permite expandirmos nosso conhecimento, nossa cultura. É tão prático! Se não conseguimos por um ou outro motivo assistir a tudo agora, pausamos e continuamos outro dia. O sob demanda popularizou tanto a arte cinematográfica, com tantos títulos ao alcance da mão – há quem durma antes de conseguir escolher ao que assistir -, que fez dela algo trivial. Até vulgar. Mas a sala de cinema, por ser experiência rara, nos lembra justamente do contrário. Do quanto o cinema é nobre. E gigante.
A gente não paga boleto na tela do cinema. Não vê meme de gatinho. Não lê horóscopo. Não trabalha. Não ouve previsão do tempo. Não lê email. Não manda zap. Não faz chamada de vídeo. Não manda clipe de voz. Não escreve crônica. Uma tela de cinema serve ao cinema e somente a ele. Não a nós. No cinema a tela é grande e a gente é pequeno. Em casa, o contrário. A gente é grande, e as telas, pequenas.
Em nossas salas, em nossos quartos, temos um controle sobre a obra, sobre seu andamento, sua fruição, pequenininha ali na palma da mão, que a grande sala escura e comunitária não autoriza. “Experimente-me por inteiro, aqui e agora, ou vá embora”, dizem as últimas luzes que no teto se apagam. É quando somos lembrados, fisicamente lembrados, da imponência majestosa do cinema.
A tela é grande
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