A névoa dos dias


Por Wendell Guiducci

28/07/2020 às 07h00

Péricles esperava curtir mais o trabalho em casa. Esse estrangeirismo do home office agora lhe resta demasiado estranho. No começo adorou a ideia. Trabalhar de cuecas nos dias quentes, botar camisa e paletó somente na hora de fazer alguma reunião com cliente importante – mas ainda assim, em cuecas. Fazer comida para Inês e os meninos, cada dia uma receita diferente da Rita Lobo. Ficar esparramado no sofá zerando o catálogo da Netflix ou assistindo noticiário de troca de ministro, de prisão de braço direito do presidente, de avanço de mortes por todo um país abandonado a seu próprio azar.
Mas Péricles já não vê muita graça nisso tudo.
Sente falta de bater na porta dos clientes e estender-lhes a mão, chacoalhando-a com força em demonstração de confiança. De apresentar relatório em power point na meia-luz da sala de reuniões, depois sair para umas cervejas com os colegas no bar mais aglomerante do Bairro São Mateus. Em vez disso, trabalha e bebe sozinho e cada vez mais.
Na pia multiplicam-se louças sujas: embora o número de pratos e talheres e panelas seja proporcional ao tipo de refeição e ao número de habitantes da casa, parece ser muitíssimo maior a bagunça a arrumar do que o prazer de cozinhar. Rita Lobo nem lhe parece mais tão bonita, meio vesga e excessivamente branca.
A voz dos meninos, com os quais jogava animadas partidas de futebol no videogame, divertido paliativo para a ausência das tardes de futebol de verdade, agora lhe irrita sobremaneira. E o vermelho afogueado dos cabelos de Inês esvai-se num cinza apagado e frio.
A TV agora permanece desligada, pois só exibe a estranha sensação de que vivemos todo dia o mesmo santo dia. Aline Midlej lhe parece por demais humana e o catálogo da Netflix se fez exíguo, inatual e desinteressante. Péricles, moletom furado, cabelo desgrenhado, queria poder voltar no tempo, ir a uma locadora de fitas VHS e se perder no infinito de possibilidades físicas e táteis.
Mas não pode voltar ao passado. Então olha para o futuro. E não vê nada. No navio que deriva na névoa espessa que são seus dias, tudo para Péricles é incerteza: os meninos na escola, os clientes dispostos, os bares pulsando, o fogo de Inês.

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