Carta a um amigo roqueiro


Por Wendell Guiducci

28/01/2020 às 07h15- Atualizada 28/01/2020 às 09h50

Caro Amigo Roqueiro

Espero que esta missiva o encontre são e salvo e forte. Há tempos não nos falamos, sequer tivemos oportunidade de comentar aquela última música do Pearl Jam. O que achou? De minha parte, chatíssima. Não pela “ousadia” da simulação das programações eletrônicas, penso que, se você não for o AC/DC, é preciso sempre ousar para arejar as ideias e os sons. Só achei ruim mesmo. O PJ, aliás, Caro Amigo, você bem sabe, na minha visão, é uma banda superestimada. Ao fim e ao cabo, renderá uma boa coletânea de greatest hits, nada além disso.

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Mas meu objetivo aqui não é desancar os senhores de Seattle, cujas ideias admiro bastante. É que tomei conhecimento, via redes sociais, de seu horror diante do edital de incentivo a bandas da Funarte, que expressamente proíbe que se beneficiem bandas de rock. Ora, nada surpreendente. Sabemos que este Governo que ora desgoverna o país está repleto de fundamentalistas religiosos e fanáticos de toda sorte. Este moço mesmo, titular da Funarte, já disse que o rock “leva ao aborto e satanismo”. Preciso citar o caso do ex-secretário de Cultura, aquele que foi contratado e demitido devido a sua simpatia por conceitos nazistas?

Todavia, meu Caro Amigo Roqueiro, onde você vê motivos para se revoltar no Facebook, eu vejo oportunidade de reflexão. Ao contrário do que “pensam” muitas cabeças do governo, o rock nunca foi tão inofensivo quanto hoje em dia. É uma aguinha com açúcar que não faz engasgar nem a mais carola tia da Congregação Mariana. Aprovamos nossos discos nas leis de incentivo, com as bênçãos do estado. Oramos para que nossos filhos ouçam um Ledzinho, um Stones, um Nirvana, uma Legião Urbana que seja. Com mil diabos, Caro Amigo, imagina se um pai na década de 1970 ia lá querer que seu filho escutasse Alice Cooper ou Secos e Molhados?! Aquela década foi a última em que o rock ofereceu algum perigo, representou alguma rebeldia de verdade, alguma subversão, alguma reinterpretação do mundo.

Nós, que crescemos nos anos 1980 tendo o rock como música mainstream, tocando nas novelas e nas rádios, Rock in Rio, “Bete Balanço”, nos acostumamos a ser situação. Agora, excluídos há anos do top 100 das músicas mais tocadas no Brasil, nos lamuriamos, em vez de assumirmos a condição de oposição, a saudável e potente condição de oposição. O rock, aos poucos, regride a um estágio de popularidade pré-Elvis Presley. Está sendo enviado ao lugar do qual, aliás, nunca deveria ter saído: a garagem, o porão, o subterrâneo, o submundo onde devem ser tramadas as grandes revoluções, a grande inconfidência contra o status quo. Ah, que oportunidade os jovens agora têm!

No edital da Funarte jaz submersa uma mensagem muito mais importante que o óbvio desgosto pelo rock por parte dos podres poderes constituídos, meu Caríssimo Amigo Roqueiro. Jaz a lembrança de que o lugar do rock não é alinhado a governo nenhum. Para o rock, uma única lei: hay gobierno, soy contra. Cabe ao rock ser ofensivo, ultrajante, contestador, revolucionário, pecar por pensamentos, palavras e atos, mas nunca, nunca, jamais, por omissões, e bater no peito do alto dos ombros e escombros calcinados dos descontentes, orgulhoso de causar afronta, por minha culpa, minha tão grande culpa. Ou seja, tudo o que eu e você não mais fazemos, se é que um dia fizemos. Motivos para atacar o governo sobram, mas o famigerado edital não é um deles. Antes, é preciso agradecê-lo por nos lembrar uma vocação há muito perdida.

Era o que tinha para dizer-lhe por hoje, meu Caro Amigo Roqueiro. Em despedida, evoco o velho Arnaldo, mais ilustre morador do Graminha, para deixar esta provocação, que serve tanto a ti quanto a mim, e por ventura a qualquer jovem guitarrista descabelado que venha a ler estas mal-traçadas: “Será que eu vou virar bolor? Onde está o meu rock and roll?”.

Com um forte abraço do seu

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Velho Amigo Roqueiro

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