Ao meio-dia no Morro da Glória, domingo ensolarado, um menino brincava com uma vara de bambu e um escudo feito com o que sobrou de uma caixa de papelão. Concentrado na batalha, defendia-se dos golpes de invisíveis moinhos de vento e contra-atacava com a lança sacada de alguma moita nas cercanias.
Movia-se compenetrado na calçada em frente a uma quitanda, que já não era quitanda, mas um mercado medieval. E os invisíveis moinhos de vento eram gigantes biomecânicos saídos dos devaneios de algum programador de videogames, e os óculos fundo de garrafa do menino a viseira metálica de um elmo cor de chumbo.
– Não fujais, covardes e vis criaturas; é um só cavaleiro o que vos investe – pensei tê-lo ouvido gritar.
A Igreja da Glória era agora uma abadia onde monges guardavam segredos e experimentavam com processos alquímicos recém-chegados das distantes terras da Pérsia. E o Colégio Santa Catarina, um mosteiro onde freiras enclausuradas oravam sem saber da batalha que se desenrolava no lamacento morro onde seu claustro encontra-se incrustado.
Abaixo, cruzando uma estradinha que corta o reino de Norte a Leste, erguia-se do bosque o majestoso palácio imperial, guardião de tesouros de valor inestimável, inalcançáveis para as vistas da plebe rude. Mas ali nada interessava a nosso herói: queria antes a rua e a ação, a glória dos bravos que não temem nada e que nada almejam senão o amor de alguma camponesa roliça do sexto ano do ensino fundamental.
E por isso – por amor, e só por amor – ele atacava sem parar, avançando contra os gigantes com sua lança de bambu amarelo, recuando somente para defender-se com seu escudo de papelão de quitanda. Na estrada-rua, trafegavam apáticos coches-carros, alheios ao clangor das armas.
Foi isso o que vi enquanto dirigia rumo ao Bar do Bode para um prato de sardinha ao molho de tomate e cebolas.
E quem por lá passou e o mesmo não viu, bem se vê que não anda corrente nisto das aventuras.