Motocicletas zunem livres pelas ruas de Juiz de Fora nesses dias esvaziados. Na garupa nenhuma Mary Murphy, apenas caixas onde se lê Uber Eats, iFood, pizza x, hambúrguer y, zaz traz, flash, rápido, ágil, ligeiro e outros adjetivos que apontam o lado mais nefasto da velocidade: a pressa na servidão ao comércio, ao negócio.
Onde estão os módulos voadores que nos foram prometidos em 1962? Não poderiam esses trabalhadores hoje lutar sua lida diária em navezinhas supercoloridas, circulando a cúpula da Catedral Metropolitana, fazendo sombra nas últimas janelas do Alber Ganimi? Onde estão os Jetsons, os Filhos da Era do Jato?
Mas, não. Sem outro recurso, a serviço de Mamon, vilipendiam suas motos em tresloucadas manobras pelo trânsito plácido desses dias quarentênicos. Ah, que dor no coração vê-los assim quando poderiam estar rodando sobre o asfalto rumo a lugar algum, usando suas motocicletas para aquilo que de fato existem: andar sem destino, descobrir no caminho a razão do movimento.
Pois saiba, carburado leitor, que uma motocicleta não foi feita para bundas escravizadas, senão aquelas que reconhecem a escravidão e contra ela se rebelam. Uma motocicleta não é um meio de transporte, porque simplesmente não é meio: é fim.
Em seu “Zen e a arte da manutenção de motocicletas”, Robert Pirsig dá a letra: “Viver somente para alcançar um objetivo é mesquinho”. E se somos todos e sem exceção, em algum nível, escravos de um sistema que nos obriga à mesquinharia de nos submeter a determinadas tarefas e ações em troca do dinheiro que garantirá nossa comida e nossa educação e nossos luxos e prazeres e, em última instância, nossa sobrevivência, a motocicleta é não um simples artefato, mas a redenção de um momento: o momento em que, homem unido à máquina, espírito unido ao asfalto, somos capazes de subverter nossa condição de escravos, suspender o tempo histórico e pairar livres sobre a Terra. Qualquer outro uso para a motocicleta é ato de vilania.
Se há perigo? Ora, como é da natureza do cavalo ser livre, é da natureza da moto cair. Conduzir uma motocicleta é fazê-la ir contra sua vontade, mantê-la de pé, domá-la e, então, fundir-se a ela. Fazer de nossas veias, motorizado leitor, seus circuitos, e de nossa carne o aço que a constitui. Sentir, na vibração dos pneus, a vibração do universo.
Uma motocicleta é para quem sabe escutar o vento. Para quem sabe divisar em suas carícias cheiros e memórias, e em seu rugir, fogo e música. Para quem sabe, como diz o povo, que o que move o barco não é a vela enfunada, mas o vento que não se vê. Caro leitor, não há experiência como pilotar uma motocicleta, pois pilotar uma motocicleta é cavalgar uma fábrica de vento.