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Aberrações do novo normal

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O propalado “novo normal” que ora vivemos tem feito das coisas normais da existência, anormais. Aliás, mais que anormais, excêntricas, daquelas que a gente não pode evitar de, às vezes constrangedoramente, deixar de notar. E talvez não seja ainda o termo que esteja buscando.

Assisti a um filme recentemente em que os personagens de dois atores bastante altos, Vince Vaughn e Will Ferrell, discutem sobre a estatura um do outro, o segundo dizendo o quão estranha é a metragem do primeiro, que retruca, “mas, ei, nós temos a mesma altura”, ao que o personagem de Ferrell responde: “não temos, não temos, eu sou um alto elegante, e você é o tipo de cara alto que, se estiver andando pelo aeroporto, as pessoas param de comer para te olhar, você é uma aberração”.

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E eis o vocábulo buscado: nem anormal, nem excêntrico: uma aberração. Aberrações estranhíssimas, com o perdão do pleonasmo, foram o que se tornaram coisas até então comuns em nosso cotidiano, como um grupo de vozes conversando animadamente no andar de cima. Uma aberração. Uma pelada de domingo no campinho do bairro. Aberração. Uma mesa cheia de gente no boteco da esquina. Aberração.

Outro dia me senti afligido a ponto de estranhar um abraço em um filme velho. A cena começava com uma mulher andando pela rua até chegar a uma casa, o rosto coberto com cachecol. Ela subia a escada, batia na porta e dava um passo atrás, aguardando ser atendida. Oh, tão novo normal isso, dar um passo atrás para evitar a proximidade com o interlocutor.

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A cena seguia dentro da norma: uma outra personagem abria a porta e elas ficavam ali por um momento, olhando-se à distância de uns dois metros. Procedimento pandêmico padrão. E eis que, não mais que de repente, a dona da casa atirava-se sobre a visita num abraço eufórico. Aberração! O horror! O horror! Relampejou pela minha mente esta sensação de estapafúrdia estranheza, como podem, meu deus, se abraçando, como se aquilo fosse menos normal que arrancar a cabeça da outra a dentadas num filme de Lucio Fulci.

O fato é, quarentenado leitor, que o novo normal tem mexido com nosso cérebro. A ponto de a gente mesmo se sentir uma aberração vez ou outra. Na semana passada tive de ir a um laboratório no Centro da cidade. Estacionei meu Fiat na Avenida Independência e segui pela Barão do Rio Branco. Poucos metros adiante, senti os olhares sobre mim. Talvez não tanto assombrados quanto com Vince Vaughn andando pelo aeroporto, mas algo delatores. A moça na porta do banco. A atendente da padaria. O brutamontes que vinha de acolá. Olhos acusatórios.

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Foi quando me toquei: havia esquecido a máscara dependurada na alavanca de dar seta. Como pude?! Era como se tivesse me esquecido de botar as calças, flanando lépido em jaqueta, camisa, botas e cueca pela velha Rua Direita! Voltei esbaforido por onde viera, em busca do paninho que, uma vez vestido sobre meu nariz, faria de mim outra vez um cidadão regular, ordinário, mais um rosto na normalíssima marcha dos mascarados.

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