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Ditadura do conteúdo

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Quando Umberto Eco afirmou que as redes sociais haviam dado voz a uma “legião de imbecis”, nos idos de 2015, foi taxado de conservador e intolerante. A cada ano que passa, a realidade nos mostra que o escritor italiano, morto em 2016, não poderia estar mais certo. A assertividade de sua afirmação vai se desdobrando em novas e claras dimensões, como nesses dias em que vemos estabelecida mais uma ditadura social: a da produção de conteúdo.
Disseram-nos que todo mundo agora é produtor de conteúdo. E nós? Acreditamos. E vamos além: aceitamos que, doravante, temos a obrigação de produzir diuturnamente algo para as redes sociais, sejamos pessoas jurídicas ou físicas – salvam-se aí as pessoas metafísicas. Essa dinâmica à qual nos entregamos sem questionamento, dentro da legião de imbecis à qual nos alistamos com volúpia, confere nova noção ao termo “conteúdo”. Note, arguto leitor, e perdoe essa crônica em tom de ensaio: até bem pouco, quando nos referíamos a alguém que tivesse “conteúdo”, nos referíamos a uma pessoa que detinha certa sabedoria, algo de valioso para compartilhar com a coletividade. “É bom conversar com fulano, aquele tem conteúdo!”
Isso mudou radicalmente. Senão vejamos:
O governador grava um vídeo dando pulinhos, agachando, apontando o dedo para legendas pueris, com a expressão visivelmente constrangida: é conteúdo.
Emitir opiniões e julgamentos sobre absolutamente qualquer assunto, sem ter conhecimento nem estatura ética para superar o próprio sarrafo moral: é conteúdo.
Compartilhar desinformação, passar adiante qualquer bobagem potencialmente nociva – “mas está nos trending topics!”, apenas para manter o nefasto “engajamento”: é conteúdo.
Em suma, passar vergonha, oferecer declaratórios não requisitados, manter a engrenagem da internet funcionando para a alegria do Vale do Silício, tudo isso é conteúdo.
Corro o risco de ser mal interpretado aqui, visto como censor. Não é o caso. Não acho que a comunicação seja privilégio de uma casta de entendidos, tampouco que a sabedoria esteja necessariamente ligada a estudo formal, a diploma, faculdade. A quantidade de “doutor” na legião dos imbecis é colossal, e não são dois ou três sábios sem educação primária que encontramos pela vida.
De fato, todos somos hoje produtores de conteúdo, nesse novo sentido, banal, de “conteúdo”, que pode ser qualquer coisa: de úteis receitas de lasanha a dispensáveis lições de moral; de boas dicas de saúde a venenosas mentiras travestidas de informação; de poemas, canções e filmes à exposição maldosa de desvalidos. Esta é uma realidade contra a qual não posso lutar.
Meu convite à reflexão é sobre a irracional necessidade de produzir conteúdo, arquitetada por essa grande máquina de criar desejos e vender quinquilharias que é a internet, como vivêssemos numa ditadura do expressar-se. Sim, somos todos potenciais produtores de conteúdo. Mas quando nos sentimos obrigados a produzir qualquer coisa, a qualquer custo, sob pena de sermos desligados da sociedade, de uma certa sociedade, precisamos repensar essa sociedade. Precisamos refletir se queremos de fato fazer parte dela.

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