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Quadro pendurado em uma parede sem tijolos

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Eu me lembro das mãos.

Mãos de pele muito grossa que o tempo e a distância dos currais e da lavoura trataram de fragilizar. Preservados os sulcos: a pela arada pelo corte da cana, pelas farpas dos mourões, pelo canivete a desbastar o fumo, traços pequenos e infinitos em todos os sentidos e direções.

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Nas muitas pintas brilham uma centena de sóis que abençoaram e castigaram simultaneamente uma vida vivida da terra e para a terra.

Os calos nas mãos. O tecido endurecido e multicolorido, arco-íris de cabo de enxada, de foice, teta de vaca, guiada de boi. Balaio de capim nas costas, latas de leite, parto de bezerro, sacrifício de novilho, tudo decomposto em cores áridas de verde-seiva, amarelo-sumo, roxo-nódoa.

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Nas madrugadas sonolentas, as mãos ignoravam a quentura do café e abraçavam a xícara de esmalte, os dedos como enormes aranhas. Enrolavam o cigarro na palha geometricamente cortada, escolhida da montanha leve que transbordava pela porta do paiol.

Os nós dos dedos: círculos concêntricos que levavam à dureza do osso e da madeira, do machado e da lenha que o fogo devora sob o tacho onde fervem partes generosas de um grande capado.

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As mãos também sabiam fazer festa. Traziam o peixe na tarrafa, desembaraçavam da rede, traíra mordendo, acará agulhando, faca limpando escama, a mão erguendo um copo de cachaça em brinde, golinhos mínimos e o olho meio cego de catarata piscando pra mim sob a aba do chapéu, enquanto o resto dos companheiros se embebedava e, um a um, caía. E suas mãos, inabaláveis.

Tarde, muito tarde, netos e bisnetas depois, essas mãos grossas aprenderam a afagar. A tirar o peso no pouso sobre nossas cabeças. Aprenderam a sorrir (repare: há mãos que sabem sorrir). Tarde, bem tarde. Mas não tarde demais.

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