Eram ali pelas nove da noite quando a voz trovejante do mendigo ecoou na viela escura.
– Você aí, rico, pode saber: não vai ter nunca um cachorro igual ao meu! Esse aqui não dá pra comprar, não tem dinheiro que pague, não senhor!
Após a declaração tempestuosa, a rua voltou a silenciar sob a chuva fina do começo de janeiro. O mendigo gritara para todos e para ninguém, pois não havia viva alma no beco margeado por pousadas e jardins, senão nos quartos e alpendres igualmente abandonados.
Alguém lançara olhar de cobiça ao cachorro do homem na praça central? Uma criança o afagara sem autorização? O que haveria de despertar no encharcado cidadão aquele declaratório vigoroso de posse e valorização do bicho?
Sabemos, estimado leitor, que o cachorro é o melhor amigo do homem de rua. Para os que dirigem automóveis, é verídica a máxima “atrás de uma bola vem sempre uma criança” tanto quanto “atrás de um mendigo vem sempre um cachorro”. Quando em trânsito, é preciso redobrar o cuidado ao ver um ou outro.
E vejam como os cães vadios, especialmente os que escudeiam moradores de rua, sempre parecem dóceis e fiéis. Estão inevitavelmente soltos – raramente são amarrados a trapos de jeans ou corda de bacalhau -, no rastro de seus donos esfarrapados, obedientes a seus comandos e vigilantes em seu sono, que velam como guardas de alto pedigree.
Alimentam-se de restos e doações compartilhadas por seus senhores, bebem das poças e dos córregos, não tomam vermífugo e sabe-se lá se conhecem vacina. Todavia mantêm aquela carinha boa que não se encontra no perfil dos bem-cuidados dobermans e rottweilers e shih-tzus que ornam os casarões da Cidade Alta.
Não pude ver o mendigo ou seu cão santificado. Apenas ouvi o pronunciamento inflamado sob a garoa, até se apagar, eco em brasa, enquanto seus passos iam virando a esquina mal iluminada. Mas estou certo, dileto andarilho, de que suas palavras têm verdade e que nunca haverá cachorro igual ao seu.
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