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Um vazamento conveniente

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Eu havia prometido que faria meu cadastramento eleitoral biométrico tão logo o serviço voltasse a ser disponibilizado na Câmara dos Vereadores, mas fui interpelado por um cão logo que pisei o Parque Halfeld.

– Ei, Guiducci.

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Olhei em volta procurando algum rosto familiar e não encontrei ninguém.

– Aqui embaixo, não se faça de bobo.

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Era o cão. Aquele vira-latas de médio porte e pelagem curta e cor-de-mel com o qual eu travara conversa há mais de um ano naquela mesma praça.

– Você escreveu sobre mim na sua coluna no jornal, não é? Eu li. O mal do cronista é esse: roubar as histórias das pessoas, publicá-las e achar que os personagens não se reconhecerão. Ou que nem mesmo lerão. Você sabe que isso se chama arrogância? – e meneou com a cabeça, indicando um dos bancos da praça, ali do lado dos hippies.

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Um pouco desconcertado, sentei-me no lugar indicado. O sol de inverno era generoso naquela manhã. Não havia escrito nada que o desabonasse, pelo contrário, fui bastante – e com justiça – elogioso a sua inteligência.

– Você ficou chateado?

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– Não fiquei chateado – disse o cão enquanto sentava ao meu lado no banco. Você foi um instrumento meu, na verdade. Depois da publicação da crônica, muitos cães de rua da região central e até alguns do lado de lá do Paraibuna vieram ao meu encontro. Temos tratado de nossa volta à natureza, de resgatar o espírito do lobo. Os cães de apartamento é que não gostaram muito que você tenha revelado o projeto político deles. A mim, pouco importa, quero que se explodam com seus xampus e creminhos e sapatinhos coloridos, patéticos. Além do mais, não frequento apartamento nem condomínio. Mas você, você deve ficar atento. Pode estar correndo risco depois das informações que revelou.

Me escapou uma risada abafada.

– Aí. Está vendo? Arrogância. Vocês são muito arrogantes, meu consagrado. Mas muito demais da conta mesmo. Separam a gente dos nossos pais tão logo nascemos e ficam aí criticando o Donald Trump por separar mães e filhos que tentam atravessar a fronteira sul dos Estados Unidos ilegalmente. Criticam a ameaça à democracia e às liberdades individuais, os apartheids de toda sorte, mas nos botam coleiras e nos enfiam em casinhas apertadas, fecham portas e portões para impedir nosso livre trânsito, impedem que enterremos nossos excrementos, condenando-nos à imundície do chão de concreto. Vocês criticam a mutilação genital feminina nos países africanos, que consideram atrasados, bárbaros, e nos levam orgulhosos de sua civilidade para a castração nos seus consultórios esterilizados! Ora, faça-me o favor, além de arrogantes, são hipócritas. Entende porque devemos voltar à natureza, ao espírito do lobo? É pra ficar longe de vocês.

Como eu já escrevi antes, era um cão muito articulado.

– Me perdoe, eu não tive a intenç…

– Vocês nunca têm, meu caro escrevente. Nunca têm.

– Apenas quis dar-lhe um aviso. Não sou seu amigo, mas tenho em você um aliado conveniente neste momento. Você revelou os planos de dominação dos cães domésticos, e pouco me importa se eles conseguirão ou não fazer da sua raça os bichinhos de estimação deles, mas não lhe desejo mal. Fique atento. Eles sabem o que você revelou e sabem quem é você. Leem o jornal antes de mijar sobre ele. Não se iluda. Podem querer silenciá-lo. E para sempre.

Ele se levantou e foi embora, me deixando ali um tanto apoplexo, quentando o sol da manhã de inverno. Enquanto caminhava sentido Rua Santo Antônio, virou-se e disse:

– Não se apresse. Você tem até 21 de fevereiro do ano que vem para fazer o cadastramento eleitoral biométrico. Saiu no jornal que você trabalha, caso não tenha lido.

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