No último sábado pude rever meu amigo faixa-preta Fabrício Sereno.
Ator, dramaturgo, palhaço, flamenguista, estava nOAndarDeBaixo com o espetáculo “Antes dos deuses”, que ele mesmo bolou e encena com Júlia Gomes.
Ao fim da apresentação, convidou os presentes a ficarem ali para um papo.
Fiquei.
Sento em volta do palco-tatame, o pessoal levanta algumas questões, e uma delas foi a insistência do protagonista, o deus Papamã, em pintar de vermelho os lábios da sua criação, Beéryan, a primeira mulher daquele universo.
Fabrício disse que anda inquieto com muitas coisas esses dias, e que uma delas é essa necessidade de marcarmos o outro, de rotulá-lo, de fazer dele o que projetamos que seja.
“Você é azul, então é meu amigo. Você é vermelho, então vamos brigar”, disse.
Como toda boa obra de arte, “Antes dos deuses” ainda reverbera na minha cachola mesmo muitas horas após o ato final. Questões de gênero. A responsabilidade sobre o que criamos, mesmo depois que lançamos nossas criações ao mundo. A possibilidade de sermos eternos estudantes de nós mesmos.
E ecoa também aquele papo pós-espetáculo.
Porque, sim, estamos marcando o outro. Categorizando-o. Definindo-o segundo nossa própria percepção superficial. Colocando-o dentro de um compartimento que – imaginamos – lhe cabe.
E nada pode ser mais anacrônico em um tempo tão fluido como esse em que vivemos agora, em que tudo muda tão rápido, em que nada consegue manter-se numa determinada forma por muito tempo, do que levantar paredes.
E é preciso reconhecer que não marcamos somente o outro.
Marcamos a nós mesmos também.
Não nos permitimos mudar.
E não é questão de não ter convicções.
É ser convicto de que é preciso derrubar paredes, abrir janelas, deixar-se atravessar pela vida, mudar de lado, de posição, colocar-se no lugar do outro, tentar compreendê-lo.
Entender que Beéryan pode ser mulher sem ter a boca vermelha.
E entender por que o intolerante não tolera.
Por que o ignorante ignora.
Ou o papel do esclarecido não é esclarecer, iluminar inclusive suas próprias sombras, “suas minicertezas”, em vez de render-se à brutalidade instintiva que o convida a resolver impasses com os punhos e os dentes?
O Papamã de Fabrício Sereno muda. Mesmo sendo deus, e sem deixar de ser quem é (e sem spoiler!), aprende algo precioso. E isso o transforma.
E talvez seja esse aprendizado, esse tipo de educação, uma das mais transmutadoras experiências que podemos ter.
Mas para tanto é preciso manter-se aprendiz.