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Dentro dos sapatos

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Sapatos contam histórias. E frequentemente muito melhor do que a gente.

As botas de trabalho sujas de barro embaixo do tanque de lavar roupa, cujo dono nunca mais irá calçá-las, contam uma história para a senhora sentada ao lado, no tamborete sob a cobertinha de amianto, cigarro entre os dedos e olhar absorto no nada.

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Contam histórias as sapatilhas de bailarina de ponta esfolada e amarras puídas penduradas no fundo do armário.

A chuteira recém-comprada terá histórias para contar – provavelmente mais verdadeiras que as que seu dono há de relatar nos almoços dominicais.

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E também contam histórias as sandálias de couro do vaqueiro.

As campeiras do gaúcho.

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As sapatilhas do ciclista.

Botinhas sem meia.

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Um All Star azul cantou a história de amor entre um ruivo esganiçado e um trovão aprisionado num corpo de mulher.

Sapatos de palhaço, ah, quantas histórias de coxia e picadeiro nos sapatos de um palhaço?

Há história nos sapatinhos de crochê que abrigariam o pé do bebê que nunca veio para casa.

Nos coturnos que partiram costelas.

Nos mocassins que partiram para não mais voltar.

Nas galochas que se foram com cadáveres na enchente.

Nos chinelos sob a cama de quem já não caminha.

No scarpin abandonado pela amante em fuga.

No salto alto que é toda a roupa da dançarina.

Contam histórias os tênis pendurados nos fios telefônicos, flutuando contra a tarde que avermelha.

E as havaianas sobre as quais descansa a cabeça do vagabundo que erra de marquise em marquise.

Sapatos contam tudo isso.

E tanto mais.

E melhor do que a gente.

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