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Saudosa maloca

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Desde que me lembro, cantarolo Adoniran Barbosa. Acho que começou quando eu e meu irmão, ainda muito crianças, achávamos divertido cantar como o povo fala na rua, sem um adulto corrigindo pra que a gente aprendesse o “bom Português”. Que me desculpem os fiscais da grafia e da gramática do Facebook. Até entendo a boa-fé e a necessidade de defender a língua correta – nas redes sociais e na minha infância – mas tinha algo de libertador conjugar “truxe ovo frito”, querer brincar de “tiro ao álvaro” (anos mais tarde, fiquei amiga de um Alvaro, que não devia achar tão divertido) e mais que tudo, sonhar com um convite pro samba do Arnesto.

Hoje em dia, há um sem-fim de estudos da obra do sambista, mostrando que a gramática “torta” de Adoniran capta perfeitamente a essência do personagem mór de suas canções: o trabalhador pobre, sentindo os efeitos da chibata no lombo frente ao crescimento acelerado de uma São Paulo dos idos de 1950. Gente que trabalhava em construção, e se sentava na calçada com a marmita de arroz, feijão e torresmo à milanesa quando o “enxadão da obra” batia onze horas. O povo que passava o ano inteiro na cerâmica “fabricando potes lá no alto da Moóca” para realizar o sonho de uma maloca legalizada, pra dividir com os vagabundos da rua, com menos sorte na vida. Aqueles que não podiam perder o “trem das onze”, pois “automorve” não era opção.

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Numa vida em que o trabalho é igualmente proporcional à pobreza, realmente a gramática não é prioridade na lista de preocupações. E era essa realidade que Adoniran cantava, daí tanto “nóis fumo”. Não vejo muita diferença com os dias de hoje. Acompanhando o caminhar da reforma trabalhista que se anuncia enfiada por nossas goelas abaixo, vejo cada um de nossos direitos trabalhistas como as “taubas” da “Saudosa maloca” de Adoniran, Mato Grosso e o Joca: cada um que cai, dói no coração.

Só que a vida parece querer contrariar a arte desta vez. Talvez pelo fato de que nem com a CLT em vigor nós “passemos dias feliz de nossa vida”, nós, trabalhadores e trabalhadoras, não cantaremos à maloca querida para esquecer a dor de sua demolição. Malandríssimo, o samba sempre dá seus pulos. Se a derrubada da morada onde habitavam nossos direitos não vira letra, o povo canta em outro tom. E em dias como a última sexta-feira, em que multidões foram às ruas em todo o país , dizendo “não” ao pacote de crueldades que nos querem impor, o recado fica muito bem dado, a quem pensa que trabalhador é bobo: “Nós não semos tatu”. E quando sequer pensarem que aceitaremos calados as obscenidades da chamada reforma, “ói nóis aqui traveis”.

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