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Cúmplices no crime

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Dia desses marquei mais uma casa no bingo da quarentena. Fiz um bolo. Acordei com uma vontade incontrolável de comer o da minha mãe. Não era um desejo mundano de doce, que já havia matado uns dias atrás com uma farta fatia de uma belezura dessas confeitarias em tons pastéis de Jufas, descoladas, deliciosas e com níveis indecentes de leite condensado – não julgo, inclusive endosso. Mas naquele dia nem o mais oferecido e atraente atributo culinário me seduziria: eu queria o bolo da minha mãe.

“Mãe, como faz aquele seu bolo mesmo? Aquele de nada”, mandei um áudio. Segundos depois, pula a saudosa carinha dela em meu telefone: “Filha? Pega uma caneta aí!”. Folgada como os filhos da minha geração, achei que ela me mandaria uma lista de ingredientes e os passos por escrito. Mas obedeci e, a lápis, como não escrevia há tempos, fui anotando as medidas tipicamente maternas: três ovos, (“mas se forem muito pequenos pode ser quatro”); meio copo de leite (“mas não pelo medidor, usa um de requeijão”); “uma colher de sobremesa RASA” (com elevação do tom de voz para ressaltar) de fermento, e por aí vai.

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Preparei as etapas ao passo que imaginava um play na voz da minha mãe a cada linha da receita, que anotei como faziam nossos antepassados analógicos da Era pré-Rita Lobo. A batedeira, há anos esquecida, saiu de seu lockdown na escuridão do armário da cozinha e me deu uma linda clara em neve. Imponente até. “Por último, vai o fermento”, mamãe orientou. “Depois de a mistura ficar bem homogênea, você leva ao forno preaquecido, mas esses fogões de hoje já começam em 200 graus, então cuidado”. O próximo passo, esperadíssimo, era meu atrevimento autoral: lamber as pás e o pote que bateram a massa, can-ti-nho-por-can-ti-nho.

Chegou ao forno na forma devidamente untada, como me foi recomendado pela tela do celular. Demorou mais do que o previsto para que o infalível teste do palito limpo me avisasse que o bolo estava pronto, mas minha mãe serenamente já havia previsto: “cada forno tem seu tempo.” Se fechasse os olhos, estaria na cozinha dela, com o perfume quente de açúcar, ovos, manteiga  farinha e fermento pairando pela casa, um teleférico afetivo. Mal desenformei e estava igualzinho ao dela, macio, amarelado, quentinho, como eu gosto de comer, desafiando as lendas sobre intempéries intestinais. Foi como se estivéssemos sentadinhas juntas, transgredindo a sabedoria popular com a fatia ainda fumegante, bebericando um café no único lugar do mundo em que a cafeína não me suga o sono, a despeito da hora. Riríamos, cúmplices do crime de comer bolo quente.

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Não era vontade de doce, era vontade de mãe.

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