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Não acredito em bruxas

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Quando eu tinha meus 16 anos, tinha um professor que eu adorava. Era engraçadão, descolado e as aulas eram ótimas e sempre brincava com as turmas, alunos e alunas. Lembro-me de que vivia falando que ia me desafiar pra uma partida de sinuca – que eu nunca soube jogar, fique claro -, algo que por si só já faria meu alarme de abuso soar hoje em dia, mas na época, eu achava que era só o “jeitão” dele. Certa vez, fui tirar uma dúvida na sala dos professores, e ele indagou quando iríamos jogar a partida. Eu, muito adolescente, com pouco traquejo social e achando que estava fazendo piada, respondi: “Tá me pressionando a jogar, professor! Assim vou ter que acionar a direção”, disse, rindo. O semblante dele mudou, ficou sem expressão, ao que ele me respondeu, em voz muito mais baixa. “Aí você me complica.” Juntei minhas coisas e fui embora.

Eu nunca me esqueci disso. Não sabia, na época, que tinha sofrido um assédio, mas sabia que tinha algo muito errado com aquela situação. Até minha vida adulta, meus trinta e poucos anos, ninguém jamais soube dessa história. Eu fiquei anos assombrada por aquela lembrança de ter medo, vergonha e nojo daquela figura que eu encontrava toda semana e que era alguém de autoridade na minha vida. Nunca mais assisti a uma aula sem tirar os olhos do livro ou do quadro. Nunca me esqueci do alívio de me formar e nunca mais ter que vê-lo. (Mentira, vi sim, e até hoje se passar pela mesma calçada, terei arrepios). Mas nunca disse qualquer coisa até poucos anos atrás. (E não quero fazer este texto sobre mim, mas só posso relatar a experiência que eu mesma vivi).

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Eu entendo e tenho 100% de empatia com a espiral de denúncias de assédio que está vindo à tona sobre homens famosos e poderosos, depois de anos de silêncio de suas vítimas. Ver que alguém já passou pelo mesmo horror que você é uma via de mão-dupla, em que você, ao mesmo tempo em que acolhe, é acolhida, pelo sofrimento indescritível que é ser violada por um homem mais poderoso que você. De alguns anos para cá, pudemos acompanhar, na mídia, um número incontável – e que não representa nem de longe o real, entretanto – de vítimas denunciando esse trauma, por tanto tempo silenciado por medo da demissão, do descrédito, da carreira interrompida, da ridicularização, da vergonha.

É perturbador ver astros a que assistimos por anos a fios nas telas serem acusados de atrocidades sexuais? É sim, e deixa a gente sem saber como lidar e sem saber direito como entender aquela pessoa no mundo depois das denúncias, principalmente quando se trata de artistas cujas obras amamos e nos indentificamos ao longo de uma vida. Mas mais difícil mesmo é saber que tem gente – esmagadoramente mais mulheres – sendo estuprada, violada, humilhada e assediada enquanto escrevo este texto, por um cara que vai sair ileso ao cometer todas estas violências.

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A história de Harvey Winsten, Kevin Spacey, Bill Cosby, José Mayer, Nick Carter, Woody Allen, Johnny Depp e tantos, tantos outros homens não é uma fábula de quem teve a carreira destruída pela exposição de atos indefensáves que cometeram. Muito pelo contrário. É a história de quem viveu próspera e impunemente por anos a fio, a despeito dos ataques ao corpo, à integridade e à mentalidade de outros – outras, principalmente, não custa repetir.

Não entendo por que tanto homem se incomoda com essas denúncias: “nem todo homem”, “mas será que”, “mas eu nunca”, blablabla. Qualquer um que seja, de fato, um cara decente, espera que quem não é seja exposto e pague por seus erros, para evitar que mais gente sofra – e até para “nãoqueimar o filme da classe”. Não me venham falar em “morte da cantada e do do romantismo”. Existem maneiras de demonstrar interesse que não sejam invasivas e não se valham da discrepância de poder entre homens e mulheres neste nosso mundo patriarcal.

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Não venham me falar em caça às bruxas. Parafraseando o dito popular, não acredito em bruxas. Mas que elas existem, existem. E na verdade, são elas que estão caçando. A bruxa tá solta. E se você, meu amigo, já cometeu algum abuso valendo-se do seu privilégio de homem, pode esperar. Ela vai te pegar.

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