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A grande roubada

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Cerezo pelas lentes do fotógrafo e amigo Humberto Nicoline Foto: Humberto Nicoline)

Dei meus primeiros passos como repórter na extinta editoria de Geral, aqui na Tribuna. Naquele tempo, a rotina era a total falta de rotina. Por mais que os repórteres fossem se aprofundando em assuntos específicos com os quais tivessem mais afinidade, a qualquer momento podia acontecer – como ocorre diariamente – um homicídio, acidente, ameaça de bomba (que sempre acaba sendo uma mochila esquecida em um banco) ou coisa similar que nos levasse para a rua às pressas, tendo ou não expertise no assunto.

Embora hoje em dia não faça mais parte da editoria, devo a ela o jogo de cintura e o timing que todo repórter precisa ter, e também um apelido que até hoje carrego para parte dos amigos da fotografia do jornal: Júlia “roubada”. Ganhei a alcunha porque eu era a rainha das coberturas que mobilizavam repórter, fotografia e carro e, ao fim do dia, davam em absolutamente nada: uma denúncia de incêndio que na verdade era uma panela esquecida no fogão; uma fonte superimportante que marca entrevista presencial e dá bolo; esperar o dia todo em uma ocorrência por um entrevistado oficial, que, quando finalmente aparece, diz: “não sou pago para falar com jornalista”.

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Os colegas de profissão sabem que estas e outras mazelas são comuns ao jornalismo diário, mas a frequência com que elas aconteciam comigo e o humor implacável de um dos meus parceiros de pauta não me deixaram escapar, e assim aceitei o título e a sina de ser Júlia “roubada”.

O responsável foi o Cerezo, um homem de uns dois metros de altura, cor de filtro de barro e uma risada grossa e estrondosa, que foi fotógrafo da Tribuna por mais de 20 anos e nos deixou precocemente em 2011. Lembrei-me dele esses dias em função de seu aniversário de morte, poucos dias depois de sua última foto para o jornal, a cobertura da entrega da Medalha da Inconfidência, feita tradicionalmente no feriado de Tiradentes.

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Ele esteve ao meu lado em várias das furadas que caíam em meu colo, e quando cunhou meu apelido – fanfarrão que só – não deu mais sossego: “Cobrir acidente com a Júlia “roubada”? No máximo, foi um neném que tombou de velotrol! HAHAHAHA”, e ria alto, do jeito que só as letras em caixa alta podem demonstrar – e você que lê, há de me perdoar – e com piadas que variavam de tema, mas permaneciam no mesmo tom.

Pouco depois da partida do Cerezão, sonhei que estávamos, eu e ele, no cemitério, procurando o local do velório de alguma autoridade, completamente perdidos. Com o bom humor ácido de sempre, o parceiro de pauta dizia: “Ô ‘roubada’, ele está sendo velado ali ó, perto de onde eu estou enterrado.” Acordei assustada, com um arrepio percorrendo toda a espinha, e pensei, depois, em mais uma das ironias do destino: mal sabia o Cerezo que foi ele quem nos deixou em uma grande roubada: um mundo que não pode ser captado por suas lentes, ironizado por seus chistes ou musicado por suas gargalhadas.

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