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Porque eu quis

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A verdade, que só enxergo agora, é que faz tempo que eu sabia que a gente estava no lucro, nos minutos de acréscimo, na sobremesa de brinde depois do almoço. Desde que me lembro, a Dona Geralda era do mesmo jeitinho: baixinha, cabeça cinza, voz rouca e uma aptidão admirável para pequenas rebeldias. Cresci frequentando a casa onde ela passou os últimos de seus 94 anos, na minha pequena e querida Três Rios, e lá fui tratada sempre como neta, por ser unha-e-carne, há mais de 20 anos, com a Rafa, quem realmente tinha “Geralds” (como dizíamos, brincando) como avó.

Quando Rafaela, lá pelos seus 15 anos veio fazer ensino médio em Juiz de Fora, a Lara, sua pinscher de latido estridente e perninhas finas (como costumam ser) tornou-se fiel escudeira da Dona Geralda. Onde a senhorinha ia, a cachorra ia atrás, como uma guardiã, e tinha como retribuição muitos mimos, colinhos e guloseimas – estas, para o desespero da Rafa. Certa vez, vínhamos de carro para cá, e foi estranho quando, pouco depois do Salvaterra, começamos a sentir o cheiro da Baía de Guanabara. Demorou pouco para descobrirmos a origem do “aroma”, Lara havia premiado o veículo como um recém-nascido premia suas fraldas. “Vó, o que você deu pra Lara comer?”, perguntou uma Rafaela enfurecida, tratando de limpar o estrago. “Arroz, feijão e batata”, respondeu a avó, com a placidez que lhe era habitual. “Mas você sabe que ela só pode comer ração!”, retrucou a neta. “Ela me viu comendo e quis, o que eu podia fazer?”. Até hoje dou uma risadinha me lembrando do episódio.

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Quantas vezes, voltando de festinhas de adolescente já com o dia claro, fomos recebidas com café da manhã na casa da Rafa, por uma Dona Geralda que alfinetava: “Mas chegando a essa hora podiam ter trazido o pão, né?”, e ria. Minha história preferida, entretanto, é de um dia em que ela sumiu por horas, sem dizer onde ia ou o que faria, deixando os netos e as filhas preocupadíssimos, dada sua idade já  avançada. Ao fim do dia, chega a velhinha, como se nada tivesse acontecido, só para tomar um pito generalizado. “Mas onde você estava?”, “O que é que estava fazendo”, “Por que saiu assim, sozinha, sem falar nada?”. A réplica, como sempre, veio implacável: “Porque eu quis”. Nem uma palavra a mais.

Agora, já sem Geraldinha e suas declarações diárias – e hilárias – de independência, o mundo fica um tanto mais chato, um tanto mais triste, e certamente mais conformista. Vai faltar aquela pontinha de transgressão de sair para uma voltinha sem dar satisfação, que muito tem a ver com a resistência ao que é imposto, ainda que seja uma dieta restritiva de ração para sua companheira de quatro patas. Fica um vazio no cantinho destinado àqueles que ousam brigar pela sua voz, mesmo que ela contrarie supostas normas, só para, no fim, justificar com um honestíssimo “porque eu quis.”

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Hoje o coração aperta, a voz embarga, mas, na cabeça, trago uma certeza indestrutível: a de que quero me despedir deste mundo, quando for a hora,  sabendo que não me dobrei à vontade alheia e fui dona do que pensei, fiz, e senti, para bem e para mal, com todas consequências inerentes a isto. Quero saber que o que cerceou meu caráter e minhas ações veio, como para Geralds, de mim mesma: “Porque eu quis.”

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