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Trinta e oito

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Durante muitos anos, a maior parte dos meus 32, não foi difícil me olhar no espelho e me reconhecer no reflexo: “preciso emagrecer” – era o que a imagem refletida sempre me dizia. Nunca fui obesa, o que não me livrou da crueldade infantil ao ser chamada de “bola”, “baleia” e “gorda” ; tampouco de olhares julgadores de atendentes de loja quando eu quis experimentar uma roupa que a sociedade havia decidido que era “coisa pra gente magra”, portanto não pro meu bico. Porque eu posso até nunca ter sido propriamente gorda – não que seja um problema, mas não posso tomar um discurso que não me pertence. “Mas magra é que não é”, me falaram estes olhares tantas vezes ao longo da minha vida.

Da mesma forma, ouvi de muita gente que eu amo, certamente na melhor das intenções, que eu “estava linda magrinha”, quando estava na fase murcha do eterno efeito sanfona da minha existência. Fui louvada quando perdi peso, quando acordei às 6h para malhar, quando não comi a sobremesa. No dia em que lancei meu livro, uma das maiores realizações que tive até hoje, ouvi, em um dos muitos abraços que recebi, um “elogio” que nada tinha a ver com as páginas que eu entregava ao mundo: “Como você emagreceu!”. Como se ser magra fosse uma vitória, uma conquista a ser alcançada e a única forma de beleza socialmente aceitável. E como se o oposto, “gorda”, fosse um demérito, um fracasso, uma ofensa. Talvez se eu tivesse lançado um livro de dietas, receberia um “parabéns”.

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Tenho a plena consciência dos meus privilégios como branca, hétero, cis e de classe média, e entendo que falo do alto deles. Mas há algo muito errado na maneira em que estamos fazendo nossas crianças, principalmente as meninas, enxergarem seus corpos. Crescemos em meio à exaltação de padrões impossíveis de beleza, esfregados em nossas caras o tempo todo pela mídia e cobrados, ainda que sob a máscara de “preocupação com a saúde”, pelas pessoas que mais amamos e confiamos. Isso não passa ileso. Dia desses, estava feliz da vida comendo japonês, e na mesa ao lado uma garota de seus 8 ou 9 anos respondia, quando lhe perguntaram se queria mais um pouco: “Mamãe não deixa eu repetir, estou gorda.” O que ela comia? Sashimi. Sa-shi-mi.

Nos últimos tempos, emagreci bastante, talvez uns nove ou dez quilos. Sem dieta maluca, sem subir na balança ansiosa para que o número baixasse, sem abrir mão de comer e viver. Recentemente, uma vendedora quis me oferecer uma calça 38, e eu ri. Pedi a 42. Ficou grande. “Me dá a 40 então.” Grande. Enfiei a viola no saco e comprei a 38. Já está um pouco larga. Também faz pouco, outro dia mesmo, olhei-me no espelho, em meu ritual diário, e não reconheci o corpo que vi. Pela primeira vez em muito tempo, ou na vida, a imagem não veio com legenda, não me chamou pelo nome que eu sempre ouvi ao me ver: “gorda”, como um xingamento, como sempre fui treinada a ouvir. Mas nesse dia não. Foi uma fração de segundo, um micromomento, como se eu observasse a cena de fora.

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Logo sacudi o pensamento e encarei o espelho para seguir com meu dia, mas antes, apenas por um instante, vi no reflexo a menina que baixou os hashis e declinou a mais uma rodada de peixe cru. A menina que, aos 8 ou 9, já sabia como era enxergada pela sociedade e já se achava menos por isso. A menina que via seu reflexo magro e não conseguia enxergar-se nele. Dei adeus, virei-me e pus um cinto no jeans 38, afinal com as calças caindo é que não dá para combater as opressões da vida.

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