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João de quê?

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Existe um embate secular e clássico entre a fé e a ciência. Os que refutam a primeira em nome da racionalidade costumam alegar que a crença sem fundamentação racional é ilusória, cega, “enganação”. Já aqueles que têm um credo oureligião normalmente dizem que a ciência e toda sua técnica não é suficiente todos os mistérios imprevistos e desvios nos caminhos da vida. Talvez este debate nunca se encerre, e se espalhe ainda por muitas gerações. Mas quando se é mulher, não faz diferença alguma apostar na fé ou na ciência. Cada vez mais – e infelizmente – tenho a convicção de que nehuma das duas será capaz de nosa salvar.

A denúncia de abuso sexual de mais de duas centenas – eu disse duas centenas – de mulheres contra o médium João de Deus, famoso por suas operações espirituais pouco ortodoxas, é uma prova disso. Eu respeito o direito de todo mundo acreditar no que quiser, mas imagino que só buscamos cura quando estamos vulneráveis, fragilizados, doentes, angustiados, querendo restabelecer o que entendemos como nós mesmos. Nós mesmas, neste caso, principalmente. E o fato de um calhorda com pretensos poderes curandeiros sobrenaturais abusar de mulheres sexualmente justamente neste momento de fraqueza e de confiança nesta figura é a prova de quanto o modelo de homem que foi construído em nossa sociedade deu errado e nos viola impiedosamente.
João de qual Deus? Porque mesmo eu, que não sou lá muito de fé, não concebo qualquer divindade que seja conivente com um abusador sexual.

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No campo da ciência, nada muda. Não nos esquecemos do médico de nome impronunciável, Roger Abdelmassih, condenado a mais de dois séculos de prisão por mais de 50 estupros de suas pacientes. O “dotô” era especialista em reprodução humana, um dos pioneiros no país em fertilização in vitro. Em nome da medicina, as mulheres confiavam seus corpos e a possibilidade de gerar outras vidas ao conhecimento deste homem, que sumariamente os violou, depredou violentou. Que conhecimento científico é este que não promove o mínimo de discernimento sobre o direito à integridade física e moral das mulheres?

No que diz respeito a nós, quem nos salvará quando tanto a fé quanto a ciência nos falham? Spoiler: ninguém – mas nunca mais ficaremos em silêncio, apesar disso. Seja com nossas crenças, com nossa racionalidade ou com ambos, gritaremos ao mundo que nossos corpos não são públicos. Com fé e conhecimento, eu espero muito pelo dia em que nosso grito será ouvido em sua plenitude, e os abusadores cairão, um a um. Até lá, saibamos: estamos sós. Mas temos umas às outras. Gritemos.

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