Acho que desde quando eu ainda passava meus verões indo à piscina em um inocente topless no sítio da minha avó em Levy Gasparian, lá pelos 5 anos, o Belchior já estava por ali. A primeira lembrança que tenho é a de um homem barbado (leia-se: bigodado) confessando abertamente seu medo de avião. Naqueles tempos, em que voos aéreos eram coisa de rico, e que eu só experimentaria com vinte e tantos anos, pensava, do auge da minha infância no patriarcado oitentista, que se um homão bigodudo daqueles tinha medo de avião, devia ser coisa mesmo muito aterrorizante. Mas meus pais, meus tios e tias, e os agregados ouviam sempre, cantando em coro com a vitrola, e eu tinha um pouco de pena de vê-los tão felizes falando sobre o temor do cara na capa do LP.
Cresci, minha acidez de nascença foi apurando, e, nos tempos de adolescente, fazia piadas internas comigo mesma, pensando que cada menino da minha sala, com aquele bigodinho ralo e inevitável de puberdade, era um estagiário de Belchior, só que sem o currículo musical. Mais ou menos naquele tempo, ainda que ouvisse uns pagodes sofridos, uns Backstreet Boys , uns LS Jacks e outras porcarias teen, a dor de cotovelo pelas paixõezinhas juvenis ganhava ares de tragédia shakesperiana era com “Paralelas”, como era perversa a juventude do meu coração! Belcas abria os braços do Corcovado, e eu, da janela do meu quarto, no BNH do América, em Três Rios, no pequeno e charmosinho apartamento alugado em que morava com minha mãe e meu irmão. Eram os meus anos 1990.
Na faculdade, finalmente as referências belchiorianas não eram mais apenas minhas. Havia uns outros tantos pretensiosos apaixonados pela nostalgia pra cantar “A palo seco” nos fins de festa, interessados, naquele momento, “em nenhuma tioria”, e muito mais na “Divina comédia”, típica daquela altura da madrugada. Eram os anos 2000. O corpo, a mente, era diferente: tinha minha vida aqui, e minha casa da vida toda – onde quer que minha mãe estivesse e estiver – agora era “a casa da minha mãe”, então finalmente um apartamento próprio, para o qual eu ia – e ainda vou – em alguns fins de semana.
Com 31, em 2016, lendo as manchetes de jornais – de papel ou não – e constatando a velocidade asfixiante com que o Brasil caminha para o retrocesso, quase chego a rir. É irônica a dor diante da possibilidade de ser a mesma e viver como meus pais, que passaram boa parte da vida ralando por uma terra prometida que nunca chegava. A terra de quando eu era criança, em que voar era coisa de rico. Não é de se espantar que Belchior tivesse medo.
Mais do que nunca, vejo que este Brasil excludente, elitista e que jamais olha para “um preto, um pobre, um estudante”, “uma mulher sozinha” e “um rapaz delicado e alegre que canta e requebra”, entre tantos outros desprivilegiados, é “uma roupa velha que não me serve mais.” Mas não vou ficar aqui reclamando, na alucinação da dureza do dia a dia. Amar e mudar as coisas me interessa mais.