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Breve curso de mineirês

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Embora não seja mineira de nascença, tive tantos batismos de torresmo, cachaça e de morros que minha dupla nacionalidade há muito foi assegurada. Da mineiridade adquiri muitas coisas, vindo-me de supetão aqui a desconfiança, o apreço pelas mesas fartíssimas e o um apurado paladar para comer palavras.

Molho o pão no cafezinho contando um caso comprido e retomo a narrativa: “oncotô?”. Se o destino fica a uma distância medida pela unidade conhecida pelo “perto de mineiro”, eu, que não dirijo, logo desisto de andar e penso: “vou de ‘ôins’”. E embora muito se fale em grafias como “Xisfora”, “Gizdifora” e variações, acredito que a norma culta vigente no mineirês afirme que estudo diariamente este dialeto aqui, em “Jifora”. (Mas pode ser meu sotaque de forasteira interferindo). Seja como for, esses dias aprendi uma nova expressão, no significado e na pronúncia.

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Veja bem, eu costumava ter uma reputação como usuária compulsiva de batons de todo tipo de vermelho colorindo minha enorme boca. Mas já faz bastante tempo que eles andam cada vez mais empalidecidos. Não é que eu tenha desistido por completo de pintar os lábios. Tons que espelham a própria cor dos beiços e tímidos rosinhas têm completado a paleta de tonalidades da minha face nos (poucos) dias em que decido colori-la.

Mas o vermelho não. Pego, deslizo o bastão sobre a boca, espalho, corrijo, e no reflexo que o espelho devolve, é como se a tinta que antes era quase extensão do que entendia como sendo a minha cara agora pintasse um rosto outro. O meu não. Há meses desisti da cara que tinha. Há meses meus batons vermelhos entraram em quarentena. E eu os olhava como mutilados relatam o formigamento de um pé ou um braço perdidos. Uma parte (besta, é verdade) de mim, que passou a existir ali, fechadinha a zíper junto a bisnagas de corretivo, delineadores, blush, rímel e cores duvidosas de sombra.

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Sem aviso, um dia o coração pulsou diferente, talvez no compasso de outros tantos que me enviam amor. (Eles enviam todo dia, é verdade, mas é que às vezes a gente sente mais forte, quase como uma descarga eletrizante). Movida por esses volts, tingi a boca e me vi refletida, como tantas vezes antes. Que não se ressintam os rosinhas e cor-de-boca, até porque passo a vez de viver uma vida em que eu tenha que ser sempre a mesmíssima. Mas me encheu de uma ternura tão besta quanto genuína ver que o vermelho em mim não desapareceu, não passou, não morreu.

E foi assim que aprendi, ao mesmo tempo, o diagnóstico para minha patologia e uma nova palavra em mineirês: “Saudadesi”. Saudade de si.

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