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Quebra-cabeça

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Já estava para acontecer, mas como quem entra em negação após um diagnóstico terminal, eu fingia que nada estava acontecendo. Não queria acreditar que, mais uma vez, o raio se perderia do GPS orientado pela sabedoria popular, e cairia em Juiz de Fora novamente. Era dolorido pensar que o Cine Palace iria mesmo se tornar um não lugar no cotidiano da cidade. Mas já tinha acontecido com O Pirralho. O palacete dos Fellet. O Raffa’s. O Del Center. O bar do Piriá. Edificações consanguíneas tiveram ainda menos sorte, vindo a óbito precocemente, como o Cine Veneza, o Festival e o Excelsior. Era de se esperar, mas eu me fazia de besta, esperando que o destino fosse camarada, e que os investidores fossem acometidos por uma amnésia incurável, assim o leilão do imóvel ficaria na caixa do esquecimento, em uma eterna possibilidade, mas nunca uma concretização.

Na esquina que cheira a pipoca com queijinho, cansei de esperar por alguém com os ingressos na mão, já impaciente, porque gosto de chegar patologicamente cedo nas sessões. Talvez na maioria absoluta das vezes me aconcheguei tanto quanto foi possível nas poltronas de couro vermelhas, para fazer um dos meus programas favoritos: ir ao cinema sozinha, não raramente emendando um filme no outro, por ânsia cinematográfica, desejo de procrastinar a vida ou uma chuva juiz-foranamente repentina. Foi naquelas poltronas que meus dedos esbarraram timidamente pelas primeiras vezes nos do Renato, sob a luz de grandes filmes e uns tantos de gosto duvidoso, pretexto para nos sentarmos lado a lado nos assentos, muito antes de saber que um dia estaríamos assim pela vida, sob o mesmo teto.

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Também ali, com pouquíssima grana, assisti a obras que se tornaram antológicas de uma geração. Numa época em que minha Três Rios de nascença não tinha mais cinema desde os anos das enormes salas antigas, ir à pré-estreia de um filme conceitual como Dogville, à meia-noite, com os amigos entendidos de cinema da faculdade, me deu um senso provinciano e delicioso de estar vivendo cultura. Também ali, quando as luzes se acenderam após o documentário “Loki”, sobre a vida do Arnaldo Baptista, aplaudi o mutante de uma distância de meia fileira. Improvavelmente também entre aquelas cadeiras, chorei sem ter assistido filme, em um pedido de casamento que foi fruto de uma história de amor que nem os diretores mais aclamados teriam tanta delicadeza para traduzir em roteiro.

Foram muitos filmes bons. Muitas comédias românticas imbecis. Quase todos os lançamentos do Woody Allen. Muitos festivais Primeiro Plano, seguidos pelo bochicho de ir para o coquetel de abertura, sob escuta atenta do sempre presente do Mamute. Apegada a materialidades afetivas que sou, guardo ainda uma quantidade alarmante de ingressos de sessões a que fui. Como “Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban” , único da série a que assisti, com o coração partido depois de um pé na bunda, levada por uma amiga que não queria me deixar chorando sozinha em casa. “Conquista”, documentário realizado por amigos de faculdade, que me deu um senso, naquele tempo, de que a vida realmente estava acontecendo. “Bastardos Inglórios”, de quando eu e Renato já não assistíamos filmes ruins no cinema, mas ainda dividíamos a minha cama de solteira. “Café Society”, o último ingresso, de um dia de férias em que resolvi viver a cidade em que passo meus dias úteis.

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Pode até ser que um dia um afã por desapego faça com que eu dê fim aos tickets de papel que fazem um quebra-cabeça da minha vida. Em tempos líquidos, a materialidade das lembranças ocupa espaço demais para continuar existindo. Exatamente como nosso último cinema de rua. Mas não há leilão que repasse a propriedade das vivências que se passaram entre aquelas paredes erguidas na esquina do Calçadão com a Batista. E é por isso que o Cine Palace será eterno. A cidade dos afetos é indestrutível.

 

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