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Todos estão surdos

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Quando qualquer dia era dia à noite e num destes qualquer, muitos anos atrás, ouvi Roberto Carlos na noitada talvez pela primeira vez, e ele me dizia, uma vez mais, que “todos estão surdos”. De ouvidos bem abertos, eu e meus amigos nos sacolejávamos e entoávamos o viciante “la la la la la laaaaaaaaaaa” que permeia a música, sem pensar muito sobre o déficit auditivo coletivo da sociedade. Hoje sei que estamos surdos mesmo, todos.

Tardiamente esta semana fui desabafar sobre o fato de que não gostei da nova música do Chico Buarque. Além de ter achado um tanto chata, não me identifiquei com os versos, não me senti tocada por uma letra sobre um amor que larga “mulher e filhos”, não me identifiquei, me incomodou, não gostei, enfim. ( E sim, sei que não é a única música no extenso cancioneiro de Francisco que pode causar este efeito). Não bateu. No meu post e em outros, vi que criou-se uma celeuma, um #Chicogate, mais uma polarização idiota. De um lado, “tem que gostar porque é Chico”, de outro “não pode gostar porque é machista.” Um reducionismo besta, um piriri de regras sobre fruição da arte que me deu sono só de lembrar.

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Confessei, lá na selva do Facetruque, meio sentindo que era coisa “que dá dentro da gente que não devia”, não ter gostado de “Tua cantiga”, o que não nega meu encantamento pelo autor dela e por diversos de seus eus-líricos ao longo da vida. Aliás, qualquer nariz que se possa torcer contra a nova música é em relação a ele, esse cara impalpável chamado eu-lírico. Mas o tribunal da internet, para qualquer lado, quando vê um pensamento distinto do que tem como verdade já busca argumentos para desmerecer a fruição da arte, que é subjetiva: “Você não entendeu”. “O Chico é um playboy mesmo”. “A música não tem esse significado”. “Lá vem o macho fazendo machice.” Todos estão surdos. Estamos.

Não se afobem, não. Só posso falar sobre mim, mas continuo achando o Chico um gênio. Continuo “tendo os sentidos roubados” por suas letras e sua voz deliciosamente desafinada, com “um jeito manso que é só seu”. Segue incólume minha “ofegante epidemia” ao cantar “Apesar de você”, na certeza de que “amanhã vai ser outro dia.” Ainda dói constatar que nossa pátria caminha, tantos anos depois, “subtraída em tenebrosas transações.” Mas há que haver o direito de não gostar da última música, seja ela qual for. Até porque a arte nem sempre desperta o “gostar” e o “não gostar”. Ainda bem.

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Acho também – e, novamente, só posso falar sobre o que eu sinto – que não me ver nesta nova cantiga só torna a relação artista-fã mais honesta, mais genuína, menos “amei porque é Chico”. Até porque consigo imaginá-lo fugindo da treta, da polarização, e cravando, sobre o rebuliço em torno de sua canção caçula, respeitando qualquer opinião: “Deixa a menina sambar em paz”.

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