Descobri a existência de Chico Buarque quando criança. Curiosa, apaixonada por boas histórias ou simplesmente fofoqueira, fiquei hipnotizada com os versos de “Construção” e o destino malfadado do brasileiro que, como tantos que eu viria a conhecer ao longo da vida, morreria ao (ou de) trabalhar.
Ficava – e até hoje fico – impressionada com a dança da cadeira das palavras, que se cruzavam, se trombavam, se invertiam mas inexoravelmente acabavam em uma morte inconveniente atrapalhando o tráfego, o público, o sábado. A clássica gravação emendava com “Deus lhe pague”, um grito indignado, irônico e contrariadamente submisso a quem jogava a pá de cal na tumba do trabalhador da canção anterior. “Por me deixar respirar, por me deixar existir, Deus lhe pague.” Deus lhe pague, desgraçado de uma figa.
Como alguém que vive de sua relação com as palavras, eu devia me envergonhar de cair em um clichê medíocre, mas no Brasil, de fato, a vida imita a arte. A decisão do STJ na última semana, determinando que a lista de tratamentos cobertos por planos de saúde, o chamado rol da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), deve ser taxativa, sujeita os brasileiros e brasileiras a viverem em um looping de “Construção”, com a possibilidade de “morrer na contramão atrapalhando” a qualquer momento.
A medida desobriga os convênios médicos a seguirem procedimentos que não estejam previstos na relação de terapias aprovada pela agência. Com isso, pacientes com deficiência, pessoas com doenças crônicas e pacientes oncológicos, entre outras pessoas, passam a ter que arcar com os custos de tratamentos e terapias fundamentais para a sobrevivência. Para não morrerem e/ou viverem com um mínimo de dignidade. Junte essa decisão e as tentativas sucessivas e incisivas de sucateamento do SUS e tenha um Brasil que se transformou numa máquina de moer seu povo, sobretudo as pessoas mais pobres. (E só quem nasceu em berço de ouro não está sentindo a água bater ou se aproximar da bunda.)
Que Deus realmente pague aos planos de saúde pelos tratamentos caríssimos que deixarão de ser cobertos. Porque a classe trabalhadora não poderá – e morrerá tentando. Deus lhes pague (e que o diabo retribua a quem decidiu que assim passará a ser).
Deus lhe pague
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