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Passei tanto tempo da vida com uma relação muito destrutiva com comida que é engraçado pensar que hoje uma das minhas áreas de cobertura aqui no jornal é justamente gastronomia. Perdoem-me pelo clichê, mas ele precisa ser repetido até que todos e todas entendam. Crescer e viver anos a fio exposta a corpos perfeitos inalcançáveis e tidos como a única forma de beleza; ouvir, muitas vezes de pessoas que me amam, com um carinho equivocado, mas não menos verdadeiro, que “só precisava emagrecer/perder a barriguinha,/enxugar mais uns quilinhos” para ficar linda e variantes do tipo me ensinaram o quanto meu corpo nunca era o suficiente. Belo o suficiente, o que necessariamente queria dizer magra o suficiente. E vejam bem, a minha história não é e nunca foi de uma pessoa gorda – e só com o tempo aprendi que a palavra que eu tanto temia não era uma ofensa, era só uma característica.

Dito isso, e porque eu realmente não posso falar sobre o drama real de ser gorda em um mundo extremamente gordofóbico, eu pensei muito esses dias sobre o quanto foi fortuito ter feito as pazes com a minha alimentação e meu corpo, que já aguentou poucas e boas para que eu tentasse fazer com que ele coubesse em uma magreza que não lhe pertence e nunca pertencerá. Já passei semanas tomando apenas shakes dietéticos ou sopa, comendo só proteínas, comendo quase nada, engolindo remédios que prometiam que os números na balança iriam decair. Só quando me libertei das privações que me prometiam menos corpulência sob os ossos, meu corpo finalmente parou de oscilar entre ganhar e perder muitos quilos. E minha autoestima parou de oscilar entre o amor e o ódio contra mim mesma, dependendo do que os dígitos do meu peso corporal ou os fechos de minhas calças indicavam. A palavra certa é equilíbrio, no lugar antes ocupado por termos como proibição e privação.

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Assim comer se tornou um ato de amor próprio, de prazer, e político, sim, na medida em que é uma forma de não me dobrar a padrões irracionais e ameaçadores de beleza. E mais do que isso, me relacionar com as pessoas que eu amo por meio da comida é uma das formas mais genuínas de expressar amor e afeto. “Guardei um pouco daquela sobremesa que você gosta”. “Fiz um cafezinho pra gente”. “Fiz aquele empadão que você ama”. “Tô feliz, vou fazer aquela pizza pra você”. “Tô com saudade, vem aqui que vou fazer um risoto”. “Mandei uns pãezinhos de mel para você provar”. “Guardei o último pedaço de (insira aqui qualquer comida boa) pra você”. São tantas microdemonstrações de sabor e de carinho, tão simples e tão incrivelmente honestas, que eu já disse e já ouvi, que fico pensando na tristeza que é abrir mão disso para tentar ser moldada por uma forma em que nunca caberei. Que bom que deu tempo de apreciar e cuidar desse corpo enquanto ainda habito nele. Que bom ter a chance de, neste tempo, expressar meu bem querer por pessoas que valorizam a mesma moeda afetiva do que eu, a do comer. E não vou mentir, melhor ainda é poder escrever sobre tudo isso no processo. Bom apetite!

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