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Caso isolado

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Eu não vou falar sobre a dor que vem da brutalidade de um homem negro que foi espancado até a morte. Golpeado re-pe-ti-da-men-te até que seu corpo parasse de responder. Não vou, porque essa dor não me pertence, porque não me ameaça aqui dentro do meu escudo branco. Por isso mesmo, meu papo é com a branquitude.

Há branco que se esquiva, com conforto, de falar sobre racismo sob a pecha preguiçosa de que “não é meu lugar de fala” ou a variante “não tenho lugar de fala”. Todo mundo tem um lugar de fala no racismo. A branquitude – de que faço parte-, ao negar o fato, está se recusando a ver sua culpa e sua participação em um sistema que extermina pessoas negras metodicamente, diariamente, brutalmente. E qual é nosso tão falado lugar de fala nessa conta secular? O de gente branca historicamente privilegiada pelo racismo, sem nem dar-se conta disso, mas incontáveis vezes sabendo, mas levianamente sem se importar.

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E antes que venha a turma do “todas as vidas importam”, já adianto que o buraco é bem mais embaixo. Fica literalmente CLARO quais vidas que importam. Não sou eu que digo. Em 2019, os negros representaram 77% das vítimas de homicídios no Brasil, com uma taxa de 29,2 por 100 mil habitantes. Entre os não negros, a taxa foi de 11,2 para cada 100 mil. Com isso, o risco de uma pessoa preta ser assassinada é 2,6 vezes superior ao de uma pessoa não negra, mais que o dobro! Fora disso, um estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) aponta que, das quase 35 mil mortes de jovens entre 2016 e 2020 no Brasil, 80% eram de negros. Quais vidas importam? 

Enquanto escrevia essa coluna, soube que outro homem negro, dias depois do homicídio de Moïse Mugenyi, foi executado por ser preto. O repositor Durval Teófilo Filho, 38 anos, foi assassinado por um vizinho, um sargento da Marinha, ao chegar no condomínio onde moravaem São Gonçalo, na região metropolitana do Rio. O militar  atirou três vezes após  Durval “ter se aproximado muito rápido de seu veículo”. A regra é, mais uma vez, literalmente, CLARA : Atira primeiro, pergunta depois.

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Tem outra galerinha que pode aparecer para questionar o racismo, sobretudo no caso do congolês Moïse Mugenyi. A galerinha que – sabe-se lá por que – assistiu ao vídeo do espancamento fatal do imigrante, para afirmar “mas vocês viram quem bateu? Foram negros”. É o argumento escravocrata e racista de quem evoca a imagem do capitão-do-mato, escravo que castigava outros escravos. Só mais um subterfúgio igualmente racista para eximir a branquitude, que é quem realmente controla os espaços de poder.

Tenhamos calma, gente branca! O dedo do racismo nem sempre é apontado para você, pessoalmente – embora, muitas vezes, sim, e com razão. A crítica ao “branco” como uma categoria, e não uma pessoa, fala da maneira desigual e brutal como nos organizamos em sociedade. Então precisa se defender atrás de um falso escudo de um escudo de falácias como “consciência humana” – em detrimento da negra. Aliás, fazê-lo só prova o argumento certeiro do branco incapaz de enxergar suas benesses. 

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Não, a morte violenta de qualquer pessoa negra não é, como tentam sempre colar, um caso isolado. Ao contrário, faz parte de um projeto histórico de exterminação no qual nós, brancos, somos preservados, poupados, protegidos, favorecidos. 

É um pacto (mais ou menos) silencioso entre brancos, chamado pacto narcísico da branquitude, que implica na negação do problema buscando justamente manter seus privilégios raciais. O medo da perda dessas regalias, e o da responsabilização pelas desigualdades raciais desembocam em mais uma maneira de projeção do branco sobre a negritude, carregada de violências. E acontece mesmo quando se tem boas intenções. (Spoiler: a tela preta no Instagram como “manifesto antirracista” é só mais uma evidência do privilégio branco).

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Reconhecer nosso favorecimento é um passo minúsculo, mas crucial para a tomada de uma postura que seja, de fato, antirracista. Calar a boca antes de pensar em questionar um apontamento de racismo também.

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