Da adolescência canina


Por Wendell Guiducci

15/09/2020 às 07h00- Atualizada 15/09/2020 às 07h54

A última vez que estive com o cachorro caramelo, aquele articulado vira-latas de médio porte e pelagem curta e cor-de-mel, fora em maio, quando revelei a ele que adotara um cão. Na última semana, à porta do Fórum Benjamin Colucci, tornei a vê-lo. Liderava uma pequena matilha no sentido Rio Branco-Santo Antônio. Reconheci-o no ato. Deixou o grupo, fez sinal para que seguissem sem ele e veio ter comigo.

– Problemas legais? -, perguntou retoricamente. Não havia preocupação em sua voz.

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– Não, apenas esperando meu sogro, trouxe-o para buscar um documento.

– É de causar perplexidade como vocês humanos deixaram-se enredar pela burocracia jurídica. Impressiona a quantidade de penduricalhos, adendos, exceções e aditivos que foram instituindo ao longo dos anos a seu já colossal cânone. Vocês criaram um monstro. E ele os mastiga diariamente, sem que ao menos se deem conta disso.

– Você entende de direito também?

– Apenas como observador. E apenas o direito ocidental, esse que deriva das crenças cristãs, assentado em valores como culpa, castigo, perdão. É bastante patético. A natureza tem leis muito mais simples.

Não custa lembrá-lo, caro leitor, é um cão bastante culto.

– Mas diga-me, já devolveu o cachorro? Gerson Charles, não é?

– Você se lembra.

– Claro. Sua família já se entediou? Mandaram-no de volta ao abrigo? Ou deceparam-lhe os testículos para que amanse?

– Nem uma coisa nem outra. Surpreso?

– Devo admitir que sim.

Aquilo me fez vir à boca um saborzinho de vingança. Ele estava certo de que nos livraríamos do cão em poucas semanas.

– Temos lidado bem com o alvoroço adolescente do Charlie, se quer saber. Apesar da destruição de todas as plantas do quintal, dos brinquedos despedaçados em minutos, dos buracos de meio metro de profundidade que fizeram do gramado um campo minado. Outro dia o fiz caminhar 6 quilômetros comigo. No trecho final ele pedia para deitar em qualquer canto de sombra que aparecesse, linguão pra fora, ofegante. Dormiu a tarde inteira quando chegamos em casa. Não é para gastar energia?

O cachorro caramelo me olhou com desdém. Depois correu o olho pelo largo da praça, onde iam gentes esquecidas da pandemia.

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– Queria ver você caminhando 6 quilômetros com uma pessoa te puxando para trás com uma coleira no pescoço.

– Não faça drama. Não posso levá-lo solto pela rua, sob pena de se perder, de pular nas pessoas, de apanhar de cachorros maiores que ele, de se enfiar embaixo das rodas de uma moto.

– De ser livre, você quer dizer.

A tenacidade do cachorro caramelo brasileiro às suas causas e crenças tem que ser estudada pela sociologia veterinária.

– Lá vem você de novo com essa história da busca pela alma do lobo?

– Não. Essa conversa já tivemos. De qualquer forma, não posso me estender no assunto, a página não esticará de tamanho e preciso ir. Os outros estão me esperando. E seu sogro também já vem lá.

Sempre me surpreendo com aquele vira-latas de médio porte e pelagem curta e cor-de-mel. De fato, quase estouro o limite de palavras imposto pelo jornal. E, de fato, era meu sogro quem vinha, elegante com sua bengala de mogno, que usa desde o dia em que se enfiou embaixo das rodas de uma moto.

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