Isolamento não acústico


Por Renan Ribeiro

31/07/2020 às 07h00

Os fones de ouvido tocam o podcast que lança um episódio semanal. O programa dura pouco menos de uma hora. Tarefa difícil é ouvi-lo sem parar o tocador em algum momento. Campainha grita, telemarketing de São Paulo liga, cachorra late querendo brincar, mensagem urgente espera resposta. Há ocasiões em que só é possível terminar o episódio quando o divido em dois ou três dias.

Morando há mais 27 anos no mesmo endereço e passando boa parte do tempo fora de casa, estudando ou trabalhando, não tinha me dado conta de como o bairro produz barulho, até estar restrito a ele por meses consecutivos. Uma das constantes é a atividade das máquinas que anunciam reformas ou reparos. Dessa vez, elas não se contentaram em estar no entorno, entraram e resolveram uma urgência dentro de casa.

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Os veículos são outra fonte inesgotável de ruídos e sustos. As motocicletas e seus aceleradores gostam de causar sobressaltos quando passam. Mesmo depois que desaparecem das vistas, as trovoadas que emitem permanecem próximas por algum tempo. Caminhões e sua trepidação balançam as janelas e dão a impressão de que algo está caindo. O anjo da esquina é muito eficiente em impedir que acidentes terríveis aconteçam. Tudo sempre fica por um triz de dar muito errado. O tráfego, apesar de estar um pouco mais brando, permanece intenso. Buzinas, freadas e xingamentos acontecem o tempo todo. Nunca medimos os decibéis nessa região, mas sei que se o fizéssemos, o valor mostrado pelo aparelho seria alto.

Os estalos do fogo queimando vegetação seca é um dos sons mais presentes e irritantes nas últimas semanas. O crepitar das chamas e o movimento das nuvens de fumaça perturbam os nervos e as “ites”. O caminhão de laranja que toca a mesma gravação o dia todo, o carro do gás que faz o mesmo. Se estivermos diante da TV, perdemos falas importantes, coisas que não conseguimos recuperar. O entendimento das coisas fica capenga e não tem jeito. As sirenes das fábricas tocam todos os dias nos mesmos horários. Sabemos se estamos atrasados ou não sem a necessidade de relógios. A passagem do trem é camuflada durante o dia por outros barulhos, mas, na madrugada, a sensação é a de que ele está no quarto ao lado.

Também nas primeiras horas do dia é que noto a presença de outros personagens. O gato que perambula sorrateiro pelas telhas galvanizadas da vizinhança. Seus passos ritmados sempre dão a impressão de que tem alguém bisbilhotando por aí. Enquanto isso, pássaros promovem seus alvoroços nas árvores.

Nesse meio tempo, enjoei da minha própria voz. Embora passe a maior parte do dia em silêncio, na mente, ela não para um segundo sequer. Não dá sossego. Talvez seja o barulho mais incômodo. Nos primeiros dias, ela sequer me deixava dormir. Agitava tudo, tirava a paciência e não gostava de esperar. Não aparecia nos sonhos, mas me acordava antes mesmo que o despertador berrasse.

Não somos preparados para lidar com esse tipo de desafio. Me abro para a escuta de tudo, sempre que consigo. Nem sempre a resposta para um desabafo está nas palavras. Mas em tempos sem abraços, não há outro jeito. O som da palavra falada chega como alento. Se os barulhos de fora e de dentro ficam insuportáveis, ainda resta escolher um CD na estante, ligar o aparelho de som, se mudar para esse outro ambiente sonoro e deixar tudo lá fora passar.

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